segunda-feira, 4 de julho de 2016

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus V

 "A prostituição naturaliza a apropriação da mulher pelo homem, porque ele PAGA pra ter a mulher" (abolicionistas da prostituição)

Vamos falar sobre naturalização da apropriação da mulher pelo homem? O casamento é quase uma escritura de compra e venda, em que a mulher passa da ~propriedade do pai e vira ~propriedade do marido (tanto que até pouquíssimo tempo atrás quando casava obrigatoriamente a mulher tirava nome do pai e botava do marido ou mantinha o do pai, mas incluía o do marido no final).

Dentro do raciocínio de que os contratos que se faz "naturalizam" a apropriação da mulher pelo homem, então se o cara quer reconhecer publicamente a mulher a """adquire"" pelo casamento, se não quer a ""adquire"" pagando por ela, com a prostituição.

Mas não é só nesses dois casos que o homem cis se apropria do corpo da mulher. Se ele não quer ou não pode reconhecer ela publicamente, não quer ou não pode pagar "por" ela, o cara faz o que pra se apropriar do corpo de uma mulher? Estupra ela. A cultura de estupro é justamente a cultura de que os homens são sujeitos e de que as mulheres são objetos à disposição para apropriação masculina.

E o que o casamento, a prostituição e o estupro têm em comum? São homens cis se apropriando de corpos de mulheres para sexo. O problema então seria a heterossexualidade. A heterossexualidade, nesse raciocínio, é que naturaliza a dominação masculina, a apropriação da mulher pelo homem.

As teóricas feministas radicais da década de 80/90 do Canadá (Mackinnon) e dos EUA (Dworkin) falam disso e falam do casamento, não falam só da prostituição e da pornografia, como as brasileiras radfuen leitoras de tumblr. de blogfuen curtem tanto falar. E será pq? Pq tem mtas delas que são bissexuais e heterossexuais e, evidentemente, elas se enxergam tendo agência na relação sexual. Quem não tem agência é sempre a "outra", no caso as coitadas das prostitutas que precisam de salvação. E da-lhe radfuen ao resgate (insira aqui o meme das power ranger rosas)









Daí essas moças da internet dizem que isso é só uma vertente do feminismo radical, o lesbofeminismo separatista (????) e segue a questão: Se é a prostituição que naturaliza a apropriação da mulher pelo homem, o casamento significa o que? E como se insere o estupro nisso tudo? Prostituição é estupro pq consentimento não existe quando é por contrato. Mas o sexo dentro do casamento, o maior contrato de todos, o mais reconhecido na sociedade, que cria mais direitos e deveres - o sexo dentro do casamento é estupro tb?
E volta a questão: se nesse raciocínio a problemática do consentimento na prostituição é que o capitalismo é sobre sobreviver na dominação do capital, pode-se falar em consentimento da mulher no sexo com homem cis, já que o patriarcado é sobre dominação masculina?

Quero deixar marcado: eu sou completamente contra pensar que heterossexualidade é falta de agência, como pensar que prostituição e casamento são falta de agência. Eu tô ligando essas três coisas porque o pensamento radfuen gosta mto de tirar a agência de prostitutas e a possibilidade de consentirem por causa da dominação do capital e são abolicionistas da prostituição porque a prostituição pra elas é ~naturalização da apropriação da mulher pelo homem. Meu ponto é mostrar que esses argumentos e essa linha de raciocínio cabem pra mto mais coisa justamente pra mostrar o perigo nessa assertiva e seus desdobramentos, especialmente porque se fala apenas de uma forma de """apropriação""" e se for pra fazer o debate que seja sem seletividade.


[Publicação original em:  https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10206494567393477&set=a.1406844741663.2056952.1548759955&type=3 ]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus IV

 Sobre o debate promovido pela Marcha das Vadias, Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus

"O risco na prostituição é gozar"
Indianara falou isso quando dizia o que ela reparou sobre si mesma quando entrou pra prostituição. Ela disse que gostava de transar. E as pessoas transam buscando o que? Prazer. Mas nem sempre quando se transa se goza. E quando ela cobrava pra transar, sendo transar algo que ela gostava de fazer, ela podia não gozar sempre, mas ganhava dinheiro sempre. E se gozasse ela ganhava um adicional ao serviço.
Num momento da fala dela ela retomou isso dizendo que transar por dinheiro não tinha nada de mais, não era aquele absurdo ou monstruosidade que as pessoas tanto falavam pra ela. "O risco que uma prostituta enfrenta é gozar." E IMEDIATAMENTE, ato contínuo, ela voltou e disse "não, claro que há riscos, há muita violência, especialmente da polícia, muitas prostitutas são agredidas, violentadas de toda forma, mas o que eu to dizendo é que sempre vou ganhar dinheiro quando transar e que ainda por cima corro o grande risco de gozar".
Eu não entendo como as pessoas pinçam uma fala, não ouvem a fala até o final e fazem esse tipo de acusação que não faz sentido nenhum. A Indianara é prostituta ativista há mais de 20 anos. Ela é uma referencia não é porque ela é bonita e engraçadinha não. É porque a Indianara sempre lutou por melhores condições de vida e trabalho pra pessoas trans e pra prostitutas (cis e trans). A Indianara é jurada de morte em vários lugares do Rio porque denunciou cafetinas e cafetões que exploravam sexualmente pessoas com cobranças e taxas abusivas. Eu mesma já estive com a Indianara em várias situações em que ela defendia pessoas que se prostituem contra violência, tanto de cliente, quanto de namorado, quanto da polícia. É muito bizarro esse tipo de difamação sobre ela porque é uma mentira absurda, que é fruto de má vontade na escuta ou de transfobia mesmo, se a gente quiser colocar pingos nos is. É uma perseguição virulenta contra uma mulher que, por ser travesti, não ser branca e não ter ensino superior não dialoga da mesma forma que vocês querem que ela dialogue. Não fala a linguagem nos signos que vocês aceitam escutar.
Isso é: transfobia, racismo e preconceito de classe.
Esse tipo de estratégia de pinçar falas assim é exatamente o que fazem políticos como o Bolsobosta, Feliciano e Malafaias.


[Publicação original em:  https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206459539237795 ]

Prostituição e feminismo

Por que toda mulher feminista deve falar da prostituição? Porque a criminalização da prostituição diz respeito à criminalização da livre sexualidade de todas nós. Combater o estigma sobre a prostituição é combater, em última análise, o estigma sobre o livre exercício da sexualidade de toda mulher. Porque as prostitutas são perseguidas pelo Estado (embora a prostituição nunca tenha sido crime no Brasil) para mandar o recado a toda mulher: qualquer uma de vocês que não seja bela, recatada e do lar vai ser perseguida. Por isso precisamos apoiar as prostitutas que combatem o estigma sobre a sexualidade da mulher. Elas são o antagonismo do que a sociedade entende que seja nossa função social. Pra sociedade patriarcal nossa função é de reprodução - nosso sexo é pecaminoso sempre, mas é justificável se formos gerar herdeiros para os homens cis brancos ricos ou gerar mao de obra barata, se formos mulheres pobres, especialmente se forem mulheres negras, como bem apontou Monique Prada, ao dizer que o aborto ainda não foi legalizado no Brasil porque é geração de mão de obra escravizável para as elites (afinal as ricas que querem abortar o fazem em segurança, as pobres morrem e ser pobre no Brasil é também uma questão de raça!)

O combate ao estigma sobre a prostituição é, em última análise, o combate à repressão/opressao sexual da qual todas as mulheres (cis ou trans) somos alvo por e quando ousamos transar sem querer reproduzir.
Falar sobre a prostituição sim. SEMPRE apoiando as prostitutas ativistas! Somos aliadas, mas são elas o front dessa batalha.

Por uma putarevolução: mais orgasmos por favor.
‪#‎MenosAmorMaisOrgasmo‬

Feminismo Radical 101 críticas II

Sobre a palestra de feministas radicais na FND em 15/06 sobre "Cultura de estupro e prostituição"


Anotem aí:
Prostituição é cultura de estupro
BDSM é cultura de estupro
Relacionamento aberto é cultura de estupro
"Ela faz um contrato com ele pra se relacionar com ele. Isso é o relacionamento mais abusivo possível" - amiga, tá falando de casamento?!
- mulher que fala em meu corpo minhas regras não pensa no que é ser tratada como objeto todo dia
- liberdade sexual é fazer orgia (ja dizia sara winter bolsominion que as feministas só querem saber de orgias, não é mesmo?!)
Feministas radicais na roda de conversa "Prostituição e cultura de estupro" na FND (a FND tem potencial pra mta coisa boa, viva as professoras feministas da casa, mas ai, que vergonha!) falas de xará e de Bubbles
-- só pra pontuar que:
* no BDSM as mulheres também são dominadoras
* amor livre e relações abertas não são só entre homens hetero e mulheres hetero e as mulheres, mesmo as cis hetero também têm agência nisso. Nenhum relacionamento é igual ao outro.
* a gente é burra aqui, a gente não fala de hipersexualização e a gente não sabe o que é ser tratada como objeto sexual no dia a dia. Inclusive quem rebola até o chão não faz ideia que o rebolado é sexualização
A gente tem, sim, que problematizar o machismo em tudo. Mas dizer taxativamente que tudo é cultura de estupro, compas vcs tão muito, muito equivocadas.
E: entre mulheres também tem relacionamento abusivo. Inclusive, né?! rs deixa quieto.
Edição: soube agora que Bubbles usou o roteiro de um filme fictício de terror pra exemplificar como roteiro de pornografia é bizarro. Tudo pode ser bizarro, mas ficção terror é uma coisa, pornografia é ôtra coisa.

[Publicação original em:   https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206432548643047 ]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus III

[Quebrando Tabus]
Eu jurei perante santa Cher que não ia mais tretar e/ou falar sobre isso na internet, mas como todo juramento se quebra e nenhuma divindade é absoluta:
Segundo a ótica marxista TODO trabalho é exploração, porque se dá na base do capital, da necessidade de trabalhar com salários baixos pra sobreviver. Bancária, advogada, recepcionista, guia turístico, vendedora, garçonete - todas essas mulheres são exploradas pelo capital porque trabalham pra sobreviver. Às vezes unicamente trabalham nessas funções pra pagar as contas e botar comida na mesa. Não é só a prostituição que é exploração por, na cabeça de algumas pessoas, só existir porque as pessoas precisam de dinheiro pra sobreviver. Trabalho no capitalismo é exploração de mão de obra de muitos pra enriquecimento de poucos, pouquíssimos.
Pra quem acredita que numa sociedade utópica, sem exploração do capital e sem misoginia, a prostituição não aconteceria, eu respondo que: numa sociedade utópica o sexo não é tabu. Transar não é tabu. Prestar serviço sexual seria tabu POR QUE? Eu tenho absoluto convencimento de que se o sexo não fosse um tabu e a liberdade sexual não fosse reprimida o trabalho sexual não seria estigmatizado.
Somos contra:
- exploração de mão-de-obra;
- trabalho de crianças e adolescentes: lugar de criança é na escola e/ou brincando;
- a escravização de crianças, adolescentes e de pessoas adultas;
- a precarização da vida;
---> SOMOS CONTRA A FALTA DE ESCOLHA.
Atacar a legalidade da prostituição (seja por criminalizar as prostitutas ou os clientes), atacar a regulamentação da prostituição: isso NÃO RESOLVE o problema da falta de escolha.
O que gera a falta de escolha é a pobreza. O que gera a pobreza é o capitalismo.
Como disse Monique, "Empoderamento [pelo trabalho] no sistema capitalista é nascer milionário ou ganhar na mega sena"

[Publicação original em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206428767028509]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus II



Sobre o debate promovido pela Marcha das Vadias, Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus

Às mulheres que estão sendo extremamente agressivas e vexatórias conosco da organização um lembrete: somos um movimento de mulheres e pessoas trans pela vida de mulheres e pessoas trans. Vocês não conquistam absolutamente nada quando reproduzem as violências que a sociedade patriarcal nos imprime desde nosso nascimento. Estamos na luta. Estamos nas ruas, não só na Marcha das Vadias, mas em todas as manifestações que acontecem em nossas cidades.
Estamos realmente entristecidas e emocionalmente exaustas com todos os ataques que nós e nossas convidadas estamos sofrendo. Estamos consternadas com mulheres que vêm até este evento nos chamar de masculinistas, dizer que estamos em desserviço do feminismo ou qualquer outra alcunha de desprezo. Pois lidamos com desprezo e deslegitimação desde que nos entendemos por gente. Fomos inocentes quando acreditamos que seria possível fazer do que era uma roda de conversa entre amigas e apoiadoras um debate entre diferentes. Mas tivemos notícia de diversas publicações feitas por colegas ou companheiras feministas radicais incitando o ataque a este evento, tanto no ambiente virtual quanto físico, e também às organizadoras da Marcha das Vadias e convidadas à mesa. Ora veja, até criaram uma página nos chamando de movimento masculinista e nos ameaçando com a polícia federal - companheira, que sabemos quem é, este é o mesmo movimento que fez com que a PF há cerca de um mês encerrasse um debate sobre a legalização do aborto na UFMG. Não se alie em atitudes aos conservadores.

Algumas de nós são mulheres que trabalham e enfrentam o machismo diário no ambiente de trabalho; algumas de nós estão na universidade e enfrentam o machismo diário que tenta nos silenciar e diminuir nossa voz lá dentro, com bloqueios ideológicos contra nossa produção feminista, perseguição política pessoal, assédio moral e até sexual. Algumas de nós são heterossexuais e lidam com o machismo no casamento. Algumas de nós são bissexuais e lidam com o machismo quando se relacionam afetiva-sexualmente com homens e com bifobia. ALgumas de nos são lésbicas e enfrentam lesbofobia diariamente em casa, na família, na universidade, nas ruas. Algumas de nós estamos fora dos padrões de estética e lidamos com opressões e desprezos relacionados a isso diariamente, dentre essas a gordofobia desde a infância. Todas nós somos perseguidas, assediadas, agredidas emocional e verbalmente (as vezes até fisicamente) nas ruas por homens cis misóginos e assediadores. Algumas de nós já se envolveram em brigas de rua por reagirem a investidas desrespeitosas. Todas nós estamos na Marcha das Vadias e somos feministas porque entendemos que, além de tudo, este é um espaço e movimento de auto-cura.

 [Publicação original em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206401051695643]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus II



Sobre o debate promovido pela Marcha das Vadias, Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus

Às mulheres que estão sendo extremamente agressivas e vexatórias conosco da organização um lembrete: somos um movimento de mulheres e pessoas trans pela vida de mulheres e pessoas trans. Vocês não conquistam absolutamente nada quando reproduzem as violências que a sociedade patriarcal nos imprime desde nosso nascimento. Estamos na luta. Estamos nas ruas, não só na Marcha das Vadias, mas em todas as manifestações que acontecem em nossas cidades.
Estamos realmente entristecidas e emocionalmente exaustas com todos os ataques que nós e nossas convidadas estamos sofrendo. Estamos consternadas com mulheres que vêm até este evento nos chamar de masculinistas, dizer que estamos em desserviço do feminismo ou qualquer outra alcunha de desprezo. Pois lidamos com desprezo e deslegitimação desde que nos entendemos por gente. Fomos inocentes quando acreditamos que seria possível fazer do que era uma roda de conversa entre amigas e apoiadoras um debate entre diferentes. Mas tivemos notícia de diversas publicações feitas por colegas ou companheiras feministas radicais incitando o ataque a este evento, tanto no ambiente virtual quanto físico, e também às organizadoras da Marcha das Vadias e convidadas à mesa. Ora veja, até criaram uma página nos chamando de movimento masculinista e nos ameaçando com a polícia federal - companheira, que sabemos quem é, este é o mesmo movimento que fez com que a PF há cerca de um mês encerrasse um debate sobre a legalização do aborto na UFMG. Não se alie em atitudes aos conservadores.

Algumas de nós são mulheres que trabalham e enfrentam o machismo diário no ambiente de trabalho; algumas de nós estão na universidade e enfrentam o machismo diário que tenta nos silenciar e diminuir nossa voz lá dentro, com bloqueios ideológicos contra nossa produção feminista, perseguição política pessoal, assédio moral e até sexual. Algumas de nós são heterossexuais e lidam com o machismo no casamento. Algumas de nós são bissexuais e lidam com o machismo quando se relacionam afetiva-sexualmente com homens e com bifobia. ALgumas de nos são lésbicas e enfrentam lesbofobia diariamente em casa, na família, na universidade, nas ruas. Algumas de nós estamos fora dos padrões de estética e lidamos com opressões e desprezos relacionados a isso diariamente, dentre essas a gordofobia desde a infância. Todas nós somos perseguidas, assediadas, agredidas emocional e verbalmente (as vezes até fisicamente) nas ruas por homens cis misóginos e assediadores. Algumas de nós já se envolveram em brigas de rua por reagirem a investidas desrespeitosas. Todas nós estamos na Marcha das Vadias e somos feministas porque entendemos que, além de tudo, este é um espaço e movimento de auto-cura.

 [Publicação original em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206401051695643]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus I

Sobre o debate promovido pela Marcha das Vadias, Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus

Queria só lembrar que enquanto algumas feministas radicais (principalmente as de internet) tão gastando energia pra enfiar a porrada na Marcha das Vadias, nas organizadoras, nas apoiadoras e nas prostitutas que são as protagonistas da luta sobre prostituição, tem macho estuprador na UFRJ, tem macho estuprador na UERJ, na UFF, na UFRRJ. Teve estupro coletivo na Praça Seca, tá tendo estupro coletivo em festa junina de igreja e uma mulher é estuprada - por um homem cis - a cada 11 minutos no Brasil. Uma mulher é vítima de alguma forma de violência a cada 11 segundos. O Brasil é o 7º país do mundo onde homens cis mais cometem feminícidios e o país que mais mata pessoas LGBT do mundo. E não sabemos quantas travestis, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias são estupradas ou assassinadas por dia porque o Estado não reconhece sequer a existência dessas pessoas (assim como vocês também não reconhecem). E não sabemos quantas prostitutas são agredidas, estupradas ou assassinadas porque o Estado não ouve quando elas falam que essas violências todas acontecem diariamente e a sociedade vira as costas porque acha a prostituição um mal a ser eliminado - vcs que perseguem e expõem prostitutas também acham, então vocês também tão aí nesse bolo de quem vira as costas pra elas e as silencia.
VAI TER DEBATE SOBRE REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO, SIM! E VAMOS OUVIR O QUE DIZEM AS PROSTITUTAS, SIM!
E estamos na luta. Nessa e em todas as outras!


[Publicação original em:  https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206393556908278]

Orlando: liberdade pra amar ou liberdade pra transar?


 Eu ainda não tinha conseguido falar nada sobre Orlando. Em parte porque me incomoda tanta gente brasileira falando disso e não falando dos assassinatos que temos aqui com a mesma força. Não digo que o que aconteceu lá não me toca, evidente que toca, tenho amigos amados nos EUA (e na Europa) com cujas vidas me preocupo imensamente cada vez que há um ataque a pessoas LGBT e migrantes nesses lugares. Mas também não tinha conseguido falar ainda por outro motivo que entendi na roda de conversa "Turismo sexual e Olimpíadas: Quebrando tabus": a resposta ao que houve em Orlando nao é "toda forma de amor vale a pena", mas todo exercício de sexualidade vale a pena. Toda putaria vale a pena.
Eu não vou pra boate apenas com uma namorada a quem eu ame e não vou pra boate em busca de amores. Eu vou pra boate em busca de extravasar as opressões que me marcam a carne, que me marcam o peito desde que me entendi sapatão. Eu vou pra boate pra fazer pegação. Eu vou pra boate pra juntar meu corpo suado com corpos suados de outras mulheres, pra beijar bocas de outras mulheres que muitas vezes eu nao sei nem o nome. Eu vou pra boate muitas vezes pra dançar apenas. E muitas outras vezes pra fazer putaria e às vezes faço ali mesmo, na pista de dança no cantinho ou no banheiro, muitas outras vezes saio de lá com alguém pra fazer putaria em casa.

Toda forma de exercer a sexualidade vale a pena. Toda forma de putaria vale a pena.

Sexo é CONSENTIMENTO. Que isso fique marcado.

Deixo aqui uma foto de um momento sapatânico putanesco delirante numa festa na CasaNem. Eu sou vadia. Sapatão, feminista e vadia. E tenho a cada dia mais orgulho disso.

Que nossa putaria nunca seja motivo de nossa morte - física, psíquica, emocional e/ou política.

#ocupasapatao









[Publicação original: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10206448222274878&set=a.1406844741663.2056952.1548759955&type=3&theater]

Sexualidade: opção ou orientação?

Queria falar brevemente que eu escolheria o mesmo tipo de vida que eu levo (salvo exceções). O que eu não escolheria é viver numa sociedade cis-heteronormativa e gordofóbica de merda. Pq seja lá o que eu sou isso tb é escolha minha e tem mta agência em ser sapatao principalmente. Agência pra caraca. Pq eu acho, desculpa aí, que homem cis até pode ser gente boa, tenho amigos que são, já transei, já zuei, mas eu acho um porre e desinteressantíssimo pra namorar ou ter qq relação afetiva mais aprofundada que não seja pelas vias da amizade (nada contra quem curte, tenho até amigas que curtem). Então ser sapatao tb é escolha minha. E acho um porre discurso de ~eu não escolheria ser gay pq sofro preconceito. Prefiro batalhar contra o preconceito e no meio da estrada curtir a vida, o sexo e o amor com outras mulheres.
E não acho o discurso "eu não escolheria" bom nem pra estratégia nem pra nada.

[Publicação original em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206209920437481 ]

Feminismo Radical 101 críticas

As feministas radicais são contra: heterossexualidade, família, prostituição, pornografia, autoidentificação de gênero.
Entendem que ser mulher é uma categoria de classe, tal qual trabalhador. E que, por isso, as mulheres devem se identificar umas com as outras, com quem são iguais (isso msm, sem recortes de classe, raça, etc) e se unir para derrubar a dominação masculina da qual elas são igualmente alvos: o patriarcado.
A heterossexualidade, pra elas, é a forma em que a dominação masculina se naturaliza. assim como o capitalista tira o trabalho do trabalhador, o homem tira o sexo da mulher. Mulher é ~dominada pelo desejo, o que naturaliza a dominação social.
A família é a forma de privatizar - tornar propriedade privada - a mulher. Assim como a escritura torna a terra propriedade privada, o casamento (outro contrato), torna a mulher propriedade privada do homem.
MASSSSS as feministas radicais no Brasil só falam contra a pornografia, a prostituição e a autoidentificação de gênero. Pautas que também são dos conservadores e dos religiosos. Coincidência ou reverberação de discursos dominantes? Perde popularidade falar mal da heterossexualidade e da família, né?!

Marília Moschkovich Temer anunciou hj um pacote de ações contra estupro e violência contra mulheres que parecia desenhado por uma radfem (as tais "feministas radicais" brasileiras). Entre outras medidas (aumento de grana pra polícia e mais pérolas do tipo), está o agravamento de penas para condenados por estupro.
A semelhança e aliança entre políticas conservadoras e essa corrente do feminismo não é nada nova. Já escrevi sobre isso na internet e em meu Facebook diversas vezes. Me recordo especialmente de um post com um trecho de a carta do Papa Bento XVI repudiando o conceito de gênero e-xa-ta-men-te com os mesmos argumentos das rads.
Historicamente vocês podem procurar ler sobre o episódio apelidado de "Feminist Sex Wars" (guerras feministas do sexo). Na ocasião, militantes como Andréa Dworkin e Catherine McKinnon se aliaram aos Temers da época e de seu país numa situação de pânico moral bem parecida com o que estamos vivendo nos últimos dias. Não é mera coincidência que essas estejam entre as principais autoras referenciadas (ou ainda, eu diria, reverenciadas) entre as radfems brasileiras. Nem que o pacote de Temer pareça ter sido desenhado por elas.
No meio de tudo isso temos o questionamento sobre a categoria mulher, e o papel revolucionário em potencial do conceito de gênero. Não é à toa que é justamente esse o conceito rechaçado pelas rads e pelos conservadores. O conceito exige, para que de fato explique algo, uma reflexão aprofundada sobre as estruturas sociais. Sobre classe, sobre parentesco, sobre cultura, sobre linguagem e, sobretudo, sobre as práticas concretas das pessoas em relação ao gênero - práticas essas que ao mesmo tempo são orientadas por normas sociais e as transformam em uma relação dialética. E, mesmo que as rads se reivindiquem "materialistas", lhes falta é muita história e muita dialética na teoria e na prática. O resultado são essas monstruosidades, aberrações militantes, como o advogada do PSOL que em nome das mulheres é violenta com mulheres (de seu próprio partido, inclusive). Nisso se assemelham aos conservadores.
Em meu doutorado, investigo justamente a recepção do conceito de gênero no Brasil e na Argentina. Ou, como apelidei carinhosamente, a GRANDE TRETA FEMINISTA DA HISTÓRIA. Não é à toa que Judith Butler começa seu Problemas de Gênero (uma obra bastante dialética) com a pergunta: a mulher é o sujeito político do feminismo? E, diferente do que pensam por aí (dá pra entender o por quê, já que o texto é bem difícil), ela conclui que não se trata de superficialmente adicionar identidades e expandir o sistema de gênero, mas sim de subverter as identidades. Tensionar esse sistema até que ele exploda. Nisso ela se parece com Marx (talvez pela boa leitura de Hegel que ambos fazem).
O que a militância T que é capaz de fazer análises estruturais tem feito é justamente isso. Tudo me leva à hipótese de que a travesti é o sujeito revolucionário potencial do século XXI. E ao fato de que a corrente do feminismo radical brasileiro não soma nada (muito pelo contrário, aliás) à nossa luta por uma sociedade sem classes e sem nenhum tipo de opressão e exploração. Só não vê quem se recusa a analisar objetivamente essa questão.
[em tempo, leiam o post da Amanda Palha sobre as ações do movimento T, relação com rads e mais: https://www.facebook.com/amandaemestereo/posts/1713899628863747 ]


<link original do post: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206349435845279
ver debate nos comentários> 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Cultura de estupro - você não é tão diferente deles se:

Você não é tão diferente deles ou muito melhor do que eles se você:
- olha insistentemente pra mulheres na rua com lascívia;
- nos chama de gostosas, delicia, linda e "te chupava todinha"
- cerca mina na boate até ela cansar de dizer não e te beijar
- chega naquela mina doidona pq reparou que ela tá pegando qualquer um e pode te dar facinho, se ela tiver apagada/desacordada, aí que sarra, toca ou mete mesmo
- cobra um beijo ou qq ~favor sexual de uma mulher em troca de drogas
- quando você tá ficando com uma mina e ela não quer transar vc insiste e não deixa ela sair do quarto, do carro, da casa ou do canto que vcs tavam ficando
- quando você começa a transar ela fala que não quer mais, por qualquer motivo que seja e você força ela a transar até você gozar
- você chega em casa e sua namorada ou esposa não quer transar e você força, porque tá com tesao e quer gozar, as vezes até acorda ela metendo sem vocês terem conversado explicitamente sobre isso e ela ter dito explicitamente que você pode fazer isso
- paga uma bebida pra uma mina e se ela não quer te beijar chama de piranha
- é amigável com uma mina e se ela não quer te pegar ela é uma piranha (ou te botou na ~friendzone)
- assedia casais de mulheres na rua, "que delicia, não tá faltando nada aí?"
- passa a mão na bunda das minas
- puxa o braço ou os cabelos das minas na boate pra chamar atenção
- ri quando seu amigo conta como "comeu aquela piranha" e mostra foto
- não chama de gostosa, mas acha graça quando seu amigo chama, principalmente se forem vários, inclusive se tiverem no carro e a mina a pé
- não ouve quando a gente fala, porque acha que a gente não tem nada de interessante a dizer - ou até acha que tem, mas acha que não é o caso
- não contrata mulher porque se identifica mais com o cara ou pq mulher engravida ou tá grávida
- não promove mulher porque se identifica mais com o cara ou pq mulher engravida ou tá grávida
- não aprova mulher em seleção de mestrado ou doutorado porque se identifica mais com o cara ou pq mulher engravida ou tá grávida
---->>> você não é melhor do que qualquer um daqueles caras, justamente porque o que você faz também é estupro (em alguns dos casos acima) ou porque o que você faz reforça a naturalização e a normalização do que aqueles caras fizeram. Eles não são doentes, eles não são lixos, eles não são monstros. Eles são caras que levaram às últimas consequências o processo de coisas para o qual você colabora com qualquer um dos casos acima e muitos outros mais. Eles são, dentro do que vc considera ser e dentro do que esses comportamentos apontam que seja, eles são MUITO MACHOS.

[Post original: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206310314027258 ]

A misoginia do golpe: FORA TEMER!

Primeiramente, FORA TEMER

"Essa é uma mulher que foi colocada na prisão na ditadura e torturada por ser dissidência. Ela é uma mulher muito forte e saudável, que já passou por muita coisa e lembre-se, as eleições no Brasil foram há apenas 18 meses, ela ganhou essas eleições com 54 milhões de votos." (Gleen Greenwald, sobre a Dilma em entrevista à CNN)
A gente não pode descolar a perseguição que Dilma sofre e as críticas que fazem a ela de uma cultura machista, de um bando de macho escroto que não consegue suportar o fato de ter uma mulher na posição institucional de poder que ela ocupa. Uma coisa é falar das políticas de governo dela, outra totalmente diferente e evidente é falar dela como falam. A Dilma é constantemente atacada pelas roupas que veste, pela idade que tem, por não ter marido, é chamada de louca e descontrolada e agora de fraca e sem força pelo discurso que fez na ONU.
Não é a toa que a Veja fez uma matéria com a esposa do Temer logo depois da votação. Uma mulher cis, heterossexual, branca, magra, loira, jovem dentro dos padrões dominantes de estética como contraponto a uma mulher de quase 70 anos (?), que é chamada de gorda, de velha, de sapatao. A Dilma ocupa o cargo mais público possível, de chefe de Estado e a esposa do Temer, que deve ser modelo pras mulheres brasileiras? Ela é "do lar". O debate de que mulheres devem estar no ambiente doméstico e os homens na vida pública (portanto política) é levantado historicamente pelas feministas. Dilma seria atacada e perseguida dessa forma se não fosse mulher? Se não fosse uma mulher "feia, ousada e do público"?
Não tem nada errado em ser "recatada e do lar" (belas somos todas), mas o que a gte não pode perder de vista é que ser recatada e do lar é o espaço que a sociedade quer que ocupemos. Se estamos nas ruas gritando por direitos, se estamos denunciando as violências do Estado, a violência doméstica, os estupros e abusos cotidianos dos quais somos alvo, se estamos no mercado formal ou informal do trabalho e levantamos nossas vozes contra todas as violências simbólicas ou factuais que possamos, então pra eles não somos mulheres que "se deem valor" e podemos, inclusive devemos ser violentadas (pra gente tomar jeito e pra gente se colocar no nosso ~devido lugar~ de submissão).
Mas o nosso valor quem dá somos nós mesmas. Podem chorar e se espernear, nos massacram e violentam todo dia, mas não vamos ficar caladas. Nunca estivemos caladas, nossos gritos serão cada vez mais altos.

#ForaTemer
[Originalmente publicado em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206115946368188 ]

Estupro não é sobre tesão, é sobre dominação!

Na manhã de ontem (25/05) foi divulgado um vídeo de uma mulher após um estupro. O vídeo foi divulgado por um dos estupradores. A menina de 17 anos foi estuprada por 30 homens, que se gabavam disso em suas redes sociais. Certamente não se gabavam (apenas) pela impunidade, mas pela naturalidade/normalidade que o estupro toma em nossa sociedade. Ao olhar desses homens nossos corpos são objetos a serem tomados, possuídos por eles como e quando quiserem. Mas esses 30 homens não são exceções. Esses 30 homens não são doentes. Esses são 30 dos homens que uma sociedade misógina produz. Os homens não são ensinados a nos amar e a nos respeitar, a nos admirar. Os homens admiram homens, querem ser como seus pais, querem ser como seus amigos, como os autores de livros que leem, como os super heróis de quadrinhos que leem, de filmes que assistem. Os homens aprendem a amar, a respeitar e a admirar outros homens, especialmente pela sua dominação, especialmente pelo exercício de poder sobre outros corpos, a quem vão julgar inferiores. Os homens são ensinados a desrespeitar e a odiar mulheres, principalmente quando essas mulheres se recusam a ser dominadas por eles ou a preencher o papel que eles exigem que as mulheres tenham.
Somos objetos sexuais - pq eles aprendem a amar homens e também aprendem a dominar sexualmente nossos corpos. Não quer dizer que eles não possam quebrar isso e agir de forma diferente, mas quer dizer que eles naturalizam e normalizam o estupro porque é esse o lugar que as mulheres têm para eles: pedaços de carne para satisfazer todo desejo e perversidade deles. Estupro não é sobre sexo e tesão. Estupro é sobre violência, é sobre dominação, é sobre constantemente nos lembrar "quem é que manda", quem está no topo da cadeia "alimentar". É para nos lembrar que eles podem tirar nossas vidas a qualquer momento e que sejamos "gratas" por eles não fazerem isso. O estupro é mais do que uma violência sexual contra uma mulher específica, estupro é uma violência simbólica, uma ameaça real a todas as mulheres e a todas as pessoas trans - para que lembremos todas que nossas vidas, nossos corpos, nossa integridade física pertencem a eles, que podem tirá-las quando quiserem.
Estamos todas indignadas, estamos todas entaladas com o estupro coletivo dessa menina em nossas gargantas. Temos o medo marcado em nossas subjetividades. Toda mulher pode ser estuprada, seja rica ou pobre; esteja andando sozinha ou acompanhada na rua; esteja vestindo burca ou shortinho; seja gorda, magra, alta ou baixa; seja de dia, seja de noite; seja qual for sua profissão ou ocupação; onde quer que more, viva, estude, trabalhe; seja qual for o ambiente que frequente. Para nós não há espaço público separado do espaço privado, não estamos seguras sequer em nossas casas, com nossos pais, tios, sobrinhos, avôs, maridos, namorados, filhos, melhores amigos ou companheiros de trabalho: 70% dos estupros ocorrem em casa, por familiares, parentes, amigos ou pessoas conhecidas e próximas.
Não estamos seguras, não estaremos enquanto formos vistas como objetos e os homens como portadores/proprietários de objetos. De que forma, então, podemos conseguir viver o dia a dia no medo e na insegurança? Nos cuidando umas às outras, nos aproximando umas das outras, nos organizando. Seja na luta de sobrevivência diária, seja em movimentos sociais, em manifestações de rua, precisamos estar atentas para cuidar uma das outras, dependemos nós de nós. Se qualquer dia você vir uma mulher ou pessoa trans incomodada com a aproximação de um cara, não vire o rosto, não se afaste, se aproxime, se coloque a disposição dela, se faça presente, vigie. Você pode salvar uma vida.
*Como vc homem podem agir para contribuir em reduzir nosso medo e insegurança? Não nos aborde sem ser convidado. Se estivermos sozinhas na rua, seja uma rua pouco movimentada ou a noite, especialmente aí nao nos aborde. Se estivermos em grupo, pergunte antes se pode conversar conosco. Se vc presenciar uma abordagem que pareça causar desconforto a uma mulher, se faça presente, primeiro a distância, mas se a abordagem for insistente se aproxime e mostre a ela que está atento e disponível a ajudar, caso ela queira. Se ouvir seus amigos ou colegas de trabalho falando de mulheres como objetos, interfira, seja o chato do grupo. Se vir um amigo ou até um desconhecido forçando beijar ou agarrando uma mulher que aparenta não estar consciente ou ter pouca consciência, tire seu amigo, ajude a menina a encontrar os amigos dela ou o caminho de casa. Se você for professor, sugira livros de autoras mulheres, filmes com protagonismo de personagens mulheres, ensine seus alunos a admirar mulheres. E tome sempre muito cuidado para não nos assustar porque temos, sim, medo de vocês. Principalmente se não te conhecemos.

[post original: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206308503421994 ]

Por que a prostituta se prostitui?

Pq a prostituta se prostitui?
Pq a faxineira faz faxina?
Pq a advogada advoga?
Pq a vendedora de loja vende roupa?
Pq a representante da avon vende avon?
Pq a professora dá aula?
Pq a gari limpa rua?
Pq a recepcionista trabalha no consultório?
Pq a secretaria trabalha no escritório?
Pq a bancária trabalha pra te vender empréstimo?
Pq a vigia trabalha pra fazer segurança do shopping à noite?
Pq a exploração do capital sobre os corpos de mulheres ganha foco e se torna um problema de todas apenas quando a trabalhadora que reivindica seus direitos enquanto tal tem por parte ou prerrogativa profissional a (re)produção de prazeres em outros corpos e no seu próprio?
Pq a maternidade, o cuidado do lar, dos filhos, dos idosos é visto como um trabalho de menor importância e não remunerado?
Se é fundamento do patriarcado capitalista a propriedade privada sobre a mulher e os filhos, ter na prostituição a fonte de sustento é igual, melhor ou pior do que ter na no casamento (e/ou na herança, na filiação) a fonte de sustento total ou parcial?
Te incomoda mais a prostituta ativista, a mãe de família devota exclusivamente ao lar e ao marido, a filha pensionista do general do exército já falecido ou a filha herdeira de um complexo hoteleiro estadunidense/europeu?
Por que o uso do corpo pra fins sexuais incomoda mais do que o uso do corpo pra todos os trabalhos acima enumerados e incomoda mais do que pra ser modelo, atriz, dançarina ou lutadora de boxe?

[Post original com debate em comentários em: https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206163273031325 ]

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Carnavalismo

A atriz Vera Holtz, publicou nesse carnaval (2016) uma série de fotos que me fizeram muito pensar sobre o que é essa festa, o que ela significa. Pra quem é carioca ou mora no Rio de Janeiro – e provavelmente em outras cidades onde o carnaval de rua seja tão forte quanto aqui – a data mais esperada não é o natal ou o réveillon. O que marca nosso começo do ano não é o dia 1º de janeiro, mas a segunda-feira da semana seguinte à do carnaval. O empresariado e as pessoas mais conservadoras reclamam, as mais festivas brincam: no Rio de Janeiro as coisas só funcionam depois do carnaval. É a mais pura verdade.

Associado a isso me fizeram pensar também três outros posts de facebook. O primeiro que eu li foi compartilhado no mural de uma grande amiga, era o texto de um cara que eu não sei quem é, o Cezar Migliorin, que falava sobre a ocupação do espaço público. “O carnaval no Rio de Janeiro me dá uma certeza: qualquer melhora do espaço urbano passa por uma intensa carnavalização.”, começa. Ele fala das longas caminhadas, do uso extensivo do espaço público por pessoas que não costumam fazer isso, da convivência entre pessoas de diferentes sexualidades, das longas caminhadas. E arremata “Não, não se trata de um carnaval eterno, mas da evidência de que muitos dos problemas das cidades - segurança, preconceitos, circulação – são resolvidos quando as ruas são ocupadas, quando se tem tempo e festa.”

A gente só caminha na cidade o mínimo possível pra chegar a um transporte público (geralmente ruim) ou particular que nos deixe novamente no ponto mais perto de casa, colégio, universidade, local de trabalho. Até se matricular numa academia de ginástica que seja longe de casa é furada, porque a gente não gosta de caminhar a não ser que seja uma obrigação e, à exceção das pessoas que trabalham com seus corpos, a academia de ginástica não é algo totalmente indispensável pra ninguém. Mas no carnaval, não. A gente pega um metrô (ou trem) até a estação mais perto possível de um bloco, mas que também pode ser longe. E a gente anda até o bloco, anda no bloco e anda pra ir de um bloco pro outro. Ônibus quase não passa no centro da cidade e na Lapa, quando passa pega trânsito ou vem cheio de mais, sem contar a tarifa altíssima que não dá pra gente ficar pagando toda hora. E né? A gente tá bebendo mesmo, vamos caminhar que a gte nem sente direito, vai que aparece outro bloco maneiro no caminho. Então a gente caminha muito, a gente conhece novas ruas, a gente não vê o comércio habitual aberto, a caminhada é em meio a outras pessoas foliãs e a pessoas vendedoras de cerveja (obrigada por vcs existirem, o caminho fica mais curto a cada isopor).
Ruas ocupadas, festas grátis e tempo livre – tudo que o capitalismo odeia. Pra piorar, a gente faz isso fortalecendo laços de amizade com quem anda junto e interage de forma brincalhona e gentil até com quem a gente não conhece, afinal tem uma galera com umas fantasias muito massas que não dá pra não fazer pelo menos um comentário.

Aí acordei hoje e vi as fotos da Vera Holtz. A primeira que vi foi essa aqui, num grupo de pessoas conhecidas que foi criado só pro carnaval.


Curiosa, abri. O primeiro comentário era de uma moça, que dizia ”Na última foto vai aparecer só a mesa”



Mais curiosa fui ver as demais fotos. A primeira, publicada no primeiro dia de carnaval (05/02/2016) era da Vera com maquiagem borrada, cabelo bagunçado, nitidamente destruída de uma bela farra, um copo enorme na frente onde lia-se “BOLDO”. Chá de boldo é bom pra curar excessos, tanto de bebida quanto de comida. A foto era de uma pessoa com uma baita ressaca, coisa de carnaval (mas logo no primeiro dia dele).

Vi a sequencia das fotos. Ela, destruída, se aproximava e bebia o copo. Depois ele estava jogado na mesa, ela caída ao lado e  parava na 09, onde só se vê o copo vazio e a mão dela. Curti a página, porque queria ver aonde ia dar. Continuei bisbilhotando a internet.

Daí vi um post compartilhado na página de uma conhecida, uma mina preta sapatão lá da UFRJ, da graduação. Eu sempre curto os roles que ela publica, ela é poeta e eu sou fã do que ela escreve, então ela tá sempre na minha timeline, o facebook é seletivo, né? Quanto mais você curte ou comenta algo de uma página ou perfil, mais aparece na sua timeline . O post compartilhado era o post da Renata Corrêa, que eu não faço ideia de quem seja (amo esse rolê do facebook da multitude de fontes disponíveis a um clique). Aqui a Renata fala de um outro post de uma pessoa que eu tb não sei quem é, mas que imagino seja alguma “personalidade conhecida” do Rio de Janeiro. A pessoa em questão reclama das “cenas de Carnaval de jovens bebados, vomitando e xingando alto em Ipanema”. E a autora fala que dificilmente vê isso acontecer no seu carnaval, porque passa o carnaval sempre pelos blocos do centro da cidade, onde se concentra, em maioria, a galera que vai pro carnaval porque curte carnaval e não a galera que gosta do carnaval porque é só “um show gratuito qualquer”, então as pessoas querem saber de ficar bêbadas, fazer pegação e zoar. Ela continua falando de como é o carnaval pra quem gosta e entra no clima da festa pela festa:
O Carnaval é resistência, é ocupar o espaço público. Nos últimos dois dias vi frequentadores dos blocos onde eu estava se impressionarem com a existência do morro da conceição, dos bairros dentro da zona portuária, entrarem pela primeira vez no buraco do lume, observarem a cidade de uma outra maneira, se tirando da zona de conforto e entrando em contato com essa entidade mística, o outro.
E a cada ano que passa estamos mais politizados - e existe política nas meninas que saíram de topless ou de maiô sem medo de assédio e existe política na marchinha improvisada contra o Pedro Paulo, existe política quando um grupo de amigos canta "deixa o cabelo dele" e é acompanhado pela galera, existe política quando o bloco para para gritar uma palavra de ordem pelo fim da polícia militar, existe política na menina negra vestida de índia protestando contra a PEC da remarcação, existe política no bando de foliões vestidos de paredão "machistas não passarão", fora as pequenas gentilezas que acontecem dentro dos blocos, muitas vezes entre desconhecidos, que diferenciam substancialmente esse carnaval de gente rolando no vômito do carnaval que eu conheço.

Eu sempre brinco com meus amigos que não ligo pra fazer pegação no carnaval, porque isso eu faço o ano inteiro, que quem olha pro carnaval e termina namoro só por isso ou dá perdido na namorada – hábitos corriqueiros de homens cis heterossexuais – é porque tá precisando ser menos conservador no dia a dia e fazer pegação também o ano inteiro. Mas não é só homem cis hetero que faz isso, óbvio. Tem gente que não tá “autorizado” a fazer pegação o ano inteiro porque a sociedade reprime, violenta e mata. A Rua Farme de Amoedo, em Ipanema, um dos points gays mais conhecidos da cidade, fica um fervo só. Impossível de caminhar. Pra ir da Visconde de Pirajá pra Prudente de Moraes não adianta tentar passar na Farme, tem que ir pela Vinícius ou pela Teixeira de Melo. A rua vira um corredor de pegação, em que você vai passando e beijando (no mínimo) um monte de mulher, se você for mulher, um monte de homem se você for homem e todo mundo se você for bi ou estiver a fim disso. Rola boquete, rola punheta, rola siririca, rola tudo na Farme. E muito furto também. E muita gente vomitando e passando mal também. Eu já fui frequentadora de Farme – primeiro porque eu queria fazer pegação e eu também não era autorizada a isso e/ou não conhecia gente pra fazer isso em outras épocas do ano. Depois porque meus amigos sentiam vontade de ir e eu acompanhava. Mas desde o ano passado (2015) eu decidi que eu não ia mais. E esse ano eu não pisei na Farme. Esse ano eu resolvi fazer “carnaval de hetero”.

Eu sempre xinguei os conservadores, mas também sempre falei bem do “carnaval de hetero” – os blocos. O único bloco de sapatão mesmo sempre foi o Toco-Xona, depois surgiram outros, de uns dois anos pra cá, talvez? Pelo menos foi quando eu conheci o Bloquete, o Viemos do Egyto, o Agytoê e o Bunytos de Corpo. Que são blocos de zuera, de carnaval mesmo e não de carão. Na Farme nunca deu certo ir fantasiada e ficar brincando com as pessoas, as pessoas não brincam com desconhecidos na Farme, elas querem fazer pegação. Se você é mulher e passa uma mulher com uma fantasia massa, se vc brincar com ela ou ela tenta te pegar ou ela te olha feio porque não quer te pegar. Pelo menos pra mim foram raras as vezes que consegui zoar com pessoas desconhecidas do mesmo sexo-gênero que eu na Farme. Nos blocos você brinca com homem, com mulher, seja cis ou trans, viado, sapatao, bi, hetero, o que for. Faz guerra de pistola de água, pede pra tirar foto por causa da fantasia, canta as músicas ou grita as falas emblemáticas dos personagens que as pessoas tao representando em fantasia, enfim, zoera generalizada e de boas.  E pra mim isso é a parte boa do carnaval. Fazer pegação é bom (maravilhoso), mas isso eu consigo fazer o ano todo, se eu quiser. Essa zoera na rua com gente que você nunca viu nem nunca mais vai ver, só no carnaval. E 24 horas por dia ou o quanto seu corpo aguentar.

E esse ano eu só quis fazer isso. Colei com as amigas heteros do IPPUR, com a Amanda (cota hetero smp), com a Ingrid e com o Bassi, os migos que curtem MESMO carnaval. Que também fazem a pegação que quiserem (se quiserem) durante o ano e no carnaval querem purpurina, glitter, fantasia e zueira. O único dia ruim de carnaval foi sábado, o dia do Toco-Xona, porque ficou absolutamente cheio do que a gente chama de “viado da farme”, as bichas heteronormativas que são “masculino e discreto, fora do meio”. Eles encheram o bloco e ficaram lá de corpos semi-nus e fazendo carão. Não deu pra andar na praça, não deu pra achar as pessoas amigas, não deu pra passear em busca de fantasias engraçadas. Só dava pra ficar parado num lugar e conversar com quem foi junto. A gente se diverte junto sempre, então foi um “dia de carnaval” que só não foi horrível porque a gente se ama.
Dia seguinte, domingo, eu primeiro encontrei o Thi em bloco de rua, que começou na Tiradentes e foi até o MAM e de lá eu colei com as meninas do IPPUR e fomos pra Gamboa. Fiz trajetos como esses que a Renata Corrêa fala na publicação. Eu nunca tinha ido no Morro da Conceição e achei lindo – to ansiosa pra levar alguém legal lá num dia por romance. Depois a gente ia pegar um taxi pra casa, mas a Ana falou que ia a pé pro metrô “porque ontem eu fiquei mais de uma hora esperando e mesmo assim não passou”. Daí fomos eu, Flavia, Luiza, Laerte e a Elza a pé da Gamboa até os arcos da Lapa. Fomos conversando, passando por um monte de lugar que a gente não costuma andar, rindo, zoando, tirando foto, fazendo xixi na rua (legalizando a bundinha) e contando história. Foi uma hora e quinze de caminhada. Depois eu e Luiza fomos pra Nuvem, na Rua Morais e Vale, que no ano passado foi um reduto de pessoas LGBT que não suportam mais a Farme. E tava a mesma boa onda, pessoas brincando, rindo, interagindo de forma amigável (e pegatícia) com desconhecidos e muita gente conhecida passando e chegando.

Segunda e terça foi a mesma coisa: fantasias, blocos e longas caminhadas até o corpo não aguentar mais. Vi algumas poucas pessoas bêbadas passando mal, só vi vômito no busão saindo do Leblon pra Copacabana (devia ser dos foliões da cerveja quente e zika) e tive interações incríveis. Hoje é quarta de cinzas, daqui a pouco vou pra um bloco em Santa Teresa, mas se não tiver energia também tá de boas, porque meu carnaval foi cheio e divertido.

Daí depois de ver essa publicação e pensar isso tudo, vi a publicação de um cara conhecido. Ele reclamava também do carnaval, do lixo, do assédio dos playboys e da falta de respeito com os garis. Terminava falando “carnaval é a grande lacuna no processo civilizatório.” Eu só comentei que existiam vários carnavais e copiei o link da Renata, mas fiquei pensando, juntando a publicação da Renata com a do Cezar (sobre a utilização do espaço público, sobre as festas grátis e o tempo livre, sobre a convivência de pessoas diferentes em uma maior harmonia que no resto do ano) e pensei: QUE BOM que o carnaval existe como lacuna do processo civilizatório, porque a civilização ocidental e o capitalismo querem o oposto do que a gente quer no carnaval. Querem nos padronizar, querem nos sufocar, querem roubar nosso tempo livre e qualquer possibilidade de harmonia entre pessoas diferentes – porque quanto mais harmônico na diferença os grupos são, mais empatia entre as pessoas e mais se fortalecem as causas individuais que são coletivas; a possibilidade do combate a opressões precisa da empatia.

Foi aí que vi a última foto do ensaio da Vera Holtz: era ela limpa, cabelo arrumado, de óculos escuros segurando um ramo verde de boldo. Um comentário dela logo abaixo: “estou bem”. 


Nada de terminar o ensaio só com a mesa, como pensou a moça que fez o comentário na foto 9/11, o que seria uma total destruição. Hoje, no último dia de carnaval, o ensaio termina com um renascimento, uma revitalização. 

Será que o carnaval é o momento mais esperado pelas pessoas que moram no Rio porque é ele que faz com que a gente consiga suportar as pesadas correntes da vida, que em muito são parte do processo civilizatório (neo)colonizador capitalista? Acho que sim. E também acho que funciona isso em termos pessoais.

Eu tô sempre estressada nos carnavais, sempre me sinto em momentos de transição. Não foram poucas as vezes que eu fiquei triste nesses cinco dias, devo ter chorado todos ou quase todos os dias, mas ao mesmo tempo eu saía, me distraía, tinha trocas leves e trocas intensas com as pessoas com quem eu saí. Eu todo dia ri muito mais que chorei, eu todo dia brinquei muito mais do que fiquei mal. Eu todo dia me diverti muito mais do que me deprimi. Eu sinto uma energia de renovação que me traz a vontade de continuar. E 2015 foi um ano difícil, muito difícil pra mim, quem me conhece sabe. 

Parafraseando o post do Cezar, qualquer melhora passa por uma intensa carnavalização.
Feliz 2016!