sexta-feira, 2 de março de 2018

STF decidiu pela desjudicialização para alteração de registro de pessoas trans - E agora, como agir?


Saiu ontem uma decisão do STF desjudicializando a retificação de nome e marcador de sexo para pessoas trans. O que significa isso e como proceder?



Significa que agora não é mais necessário entrar com processo judicial para conseguir a alteração do registro, esse procedimento vai ser feito por cartórios. O STF também decidiu pela auto-identificação, o que significa que nesse pedido ao cartório não será preciso apresentar nenhum laudo.

Ótimo, mas e aí, como faz pra alterar?
Quando saem decisões assim do STF essas decisões vão servir para o Brasil inteiro, o que significa que nenhum juiz, nenhum cartório, nenhum promotor do Ministério Público pode se opor a essa decisão. Só que o STF decide direito material, falta agora saber como vão ser os procedimentos para alteração e quem vai dar essa regulamentação do direito vai ser o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como foi na ocasião do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, onde o CNJ equiparou esse estatuto ao de pessoas de sexo distinto, inclusive com a possibilidade de conversão em casamento.

Essa forma de atuação do CNJ me leva a acreditar que provavelmente o CNJ vai buscar procedimentos já existentes em Lei para regulamentar a nova decisão do STF. De acordo com a Lei de Registros Públicos (LRP, Lei 6.015/73), as Retificações de Registro vão ocorrer por via administrativa quando não demandarem nenhuma prova (Art. 110), que é o mais aproximado da decisão do STF. Pelo entendimento desse artigo basta que a pessoa que quer retificar o registro faça uma petição, que vai ter modelo em cada cartório, e indique a alteração de registro que quer fazer. Sem necessidade de advogada, mas se quiser contratar uma advogada pra esse procedimento também é possível.

Nos casos já previstos nesse artigo, o cartório vai receber essa petição e encaminhar ao Promotor de Justiça de Registros Públicos da Comarca, que vai ter um prazo de até  40 dias para se manifestar. Havendo aquiescência, será feita averbação à margem do respectivo registro. É obrigatório nesses casos que conste menção de alteração na certidão (Art.21), o que não significa que tem que constar o nome “anterior”, basta apenas colocar uma menção, ou seja,  é possível constar a retificação na própria certidão e no campo das observações apenas a expressão “a presente certidão envolve elementos de averbação à margem do termo”.

Quanto custa? De acordo com o §5º do Art.110 esse procedimento de retificação é gratuito.

Onde pode ser feito? No Cartório do registro de nascimento ou no cartório de residência da pessoa interessada – nesse caso demora um pouco mais pra sair a nova certidão porque precisa ter a comunicação entre os cartórios.

A nova certidão sai na hora? Não. Nenhuma certidão sai na hora, tem um prazo que eu não consegui saber porque nenhum cartório me atendeu, mas geralmente varia de acordo com o volume de trabalho dos cartórios.

Assim é como funciona a retificação administrativa hoje.


Na Argentina, até hoje o único país em que se reconhece por lei o direito a auto-identificação de sexo e gênero, esse procedimento é feito em cartório e é muito simples, basta a pessoa interessada fazer o pedido e o cartório altera na hora. O Projeto de Lei 5.002/2013, apelidado de Lei João W. Nery, dispõe a esse respeito também que ninguém pode indagar sobre a veracidade da afirmação da pessoa que requer a alteração de registro. 

Se o CNJ entender pelo direito comparado ao da Argentina ou buscar nesse Projeto de Lei construído por pessoas trans, o CNJ pode retirar essa formalidade de envio ao Ministério Público do Art. 110 da LRP e ordenar que os Cartórios registrem a retificação apenas com a entrega da petição pela pessoa interessada – isso é o que mais faz sentido, já que a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 é pela desjudicialização e ademais, quem melhor que vc mesma pra saber o que é melhor pra vc? Então não faz muito sentido enviar para o MP, embora a retificação administrativa atualmente requeira isso para os casos previstos em lei.

De toda maneira a gente ainda tem que esperar o CNJ se manifestar pra saber direitinho como vai ser essa retificação de registro. O prazo pra isso pode ser de até 120 dias (vamos torcer para que seja antes). Até lá, você que tá na expecativa de fazer a alteração pode chamar a galera pra comemorar, lembrando sempre de agradecer às pessoas mais velhas que você que tão nessa luta há décadas =) 



terça-feira, 21 de novembro de 2017

Quem é o sujeito do Feminismo?

Com frequência me deparo com questionamentos que, diretamente ou não, têm essa pergunta por detrás "Quem é o sujeito do Feminismo?" Essa questão surgiu diversas vezes no curso do qual fui uma das construtoras e professoras, Diálogos feministas e práticas profissionais no Direito e na Psicologia, tanto em sala de aula, quanto nas avaliações escritas, que são parte do requerimento para o certificado.

Mas eu vejo demais essa discussão rolando pelas redes, inclusive sobre o que significa um "feminismo interseccional" e o que pretendem os transfeminismos e ainda não tinha escrito em nenhuma rede social sobre isso. Como escrevi pra devolutiva de uma avaliação, resolvi compartilhar e espero poder ajudar quem também encontra questionamentos semelhantes por aí.

No texto fiz referência ao meu livro Potência das ruas - Direito, linguagem e emancipação: processos de luta e o potencial transformador dos movimentos sociais, que foi texto-base para o debate sobre Direito e Feminismo no curso, onde além de abordar o papel que o Direito pode ter (e como) na luta por direitos, trago alguns históricos do movimento social pela despatologização das transidentidades no mundo e pela regulamentação da prostituição no Brasil, do transfeminismo e do putafeminismo.
Uma amostra do livro pode ser encontrada aqui: amostra Potência das Ruas


Quem é o sujeito do Feminismo?
A interseccionalidade é uma perspectiva sobre o feminismo e não uma categoria de feminismo em si. O transfeminismo é um movimento teórico, político e social, vamos conversar um pouquinho sobre cada coisa.



Imagem encontrada nesse post, que inclusive é mto bom

A grande questão aqui é “Quem é o sujeito do Feminismo?”, uma questão que vem sendo feita há décadas por várias teóricas e ativistas. E que pode também incluir outra pergunta: O que significa ser mulher. Lembras do texto “E eu nãosou uma mulher?” que é a transcrição de uma intervenção política da Sojourner Truth? Ela não rstava fazendo uma crítica ao feminismo, esse movimento e essa teoria sequer existiam com esse nome quando ela falou aquilo.  Por que eu sublinhei? Por que uma prática não existe só a partir do momento que ela é nomeada: assim como uma mulher se reconhece feminista, porque vê que já tinha práticas feministas, mesmo que o nome feminismo tenha surgido muito recentemente, a gente pode falar que essa prática já existe há mto tempo.

E vamos lá: A Truth falava naquele momento pós-abolição da escravidão, porque havia um discurso de que as mulheres não eram iguais aos homens por ser mais fracas, mais vulneráveis, comerem menos, trabalharem menos. E ela fala que come tanto ou mais, que trabalha muito e sempre trabalhou, que nunca precisou de ajuda pra passar por uma poça de lama – e ela não era uma mulher? Ela tava dizendo que aqueles argumentos daqueles homens eram inválidos. Mas a gente pode trazer essa mesma linha de raciocínio pra dentro dos feminismos, somando às críticas que teóricas feministas fazem quando falam que o movimento teórico que estava sendo  chamado de feminismo estava falando só sobre as necessidades de algumas mulheres quando falava, por exemplo, que as mulheres estavam lutando pelo acesso ao mercado de trabalho, mas havia mulheres que sempre trabalharam. Então aquele feminismo que só lutava por isso, estava falando de quais mulheres? As que já trabalhavam não eram mulheres ou o feminismo não era pra elas?

A perspectiva interseccional do feminismo justamente demonstra que as mulheres não passamos pelas mesmas opressões sempre, talvez nunca. Uma mulher cis e branca como eu e você tem acesso a bens que mulheres cis e negras podem não ter, que mulheres trans e brancas podem não ter. Uma mulher cis branca que seja heterossexual e tenha um marido tem ainda mais acesso a bens que uma mulher cis branca que seja heterossexual, mas seja solteira ou que uma mulher cis branca que seja lésbica – porque a sociedade reconhece naquele homem um provedor, então ele tende a ter salários maiores. E também porque os homens ocupam os espaços de poder na sociedade, o marido vai ter acesso a melhores empregos e se for do interesse dele ele vai pedir a algum outro amigo ajudar dando um emprego pra esposa dele. E por que eu coloquei esse negrito aqui? Pra gente não perder de vista que quem continua mandando nessa possibilidade é o marido, o interesse dele, então mesmo aquela mulher cis branca hetero casada tendo mais acesso a bens (o que a gente chama de privilégios sociais), ela também está submetida a um homem e isso também é razão de dificuldade de acesso, porque se ele não se interessar ele não só não ajuda, como também pode atrapalhar, por exemplo, pedindo pro tal amigo despedir a esposa quando quiser. E isso vai gerar várias outras violências. 

Então apesar de acessar privilégios, essa mulher não sai da condição de estar sendo dominada por um homem cis, branco, heterossexual, marido e com mais poder econômico e social do que ela. E o feminismo interseccional vai estar atento a isso, vai fazer o debate de privilégios como acessos a bens, que podem ser estruturais ou relacionais. Vão ser estruturais quando for considerado que uma mulher branca  acessa o mercado de trabalho com mais facilidade que uma mulher negra; ou que uma mulher cis do que uma mulher trans; que uma mulher hetero do que uma mulher que seja declaradamente lésbica. Vão ser situacionais ou relacionais quando eles forem relativos, quando eu considerar que uma mulher cis branca que ande sozinha na rua a noite vai estar em posição de vulnerabilidade por medo de estupro em relação a qualquer homem, inclusive a um homem branco ou negro. Mas se essa mesma mulher cis branca estiver na praia de Copacabana e gritar “Ladrão” pra um homem cis negro que esteja correndo sem camisa, esse cara pode ser espancado até a morte por uma turba violenta. Então ela na situação 1 tá em subalternidade, porque aqui o o dispositivo do sexo-gênero atua com mais força do que o da raça e da classe; na 2 ela subordina, porque o dispositivo da raça e da classe atuam ali com mais força do que o dispositivo do sexo-gênero. Esse é um exemplo fácil, mas há exemplos difíceis. E a perspectiva interseccional propõe que estejamos sempre atentas aos dispositivos, aos privilégios e que saibamos dialogar a partir disso. Sem uma perspectiva interseccional eu criaria uma essencialização de sujeitos, de opressões e de posições sociais. Essencialização estática, que não muda nunca. Seria equivalente a dizer que na situação 2 a mulher continua em subalternidade, mas se quem pode perder a vida é o homem, pelo mero fato de ela gritar que foi roubada (independente de ter sido ou não), então é fato que ela na situação 2 não está em subalternidade, que o sexo-gênero, embora seja uma condição que a torna hierarquicamente inferior em algumas situações, não vai atuar sempre e a todo momento, vai ter momento que não interessa se ela é mulher (podia ser um homem branco gritando, por ex, o resultado ia ser o mesmo), mas interessa que ela é branca – porque a gente vive numa sociedade que, além de misógina é racista.

O patriarcalismo – em vez de o patriarcado – e a perspectiva interseccional, em vez da perspectiva da essencialização dos sujeitos, nos permite ter uma visão mais realista e mais objetiva da vida. Porque seria mentira eu dizer que na situação 2 a mulher ainda tá subordinada a qualquer homem, ela não tá. É mais realista eu falar que naquela situação a raça negra ficou subordinada em relação a raça branca. E o feminismo, quando se propõe a ser um movimento de emancipação de todas as mulheres não pode desconsiderar a raça e a classe social, porque não existem só mulheres brancas e com grana no mundo. Ou será que as mulheres que não têm grana e não são brancas não são mulheres? Entende o que quero dizer? O mesmo vai valer para as mulheres trans.

Eu entendo o “receio” de "perder" um movimento, mas quando a gente fala em ampliar o sujeito dos feminismos a gente tá aumentando as pessoas que vão estar nessa luta com a gente. E isso potencializa o movimento.

Eu falei sobre isso na última aula, elaboro isso no livro. Vide cap 1, p 59 e cap 3,  em especial a sessão sobre transfeminisnos, p. 110 em diante.

A questão “Quem são os sujeitos dos feminismos” é: feminismo é sobre mulheres ou sobre enfrentamento às estruturas de dominação da sociedade?
Se é sobre mulheres, quais mulheres?
São só mulheres que sofrem misoginia?
Todas as mulheres sofrem com misoginia da mesma forma? Estamos todas expostas às mesmas violências, todas temos acesso aos mesmos bens? A todas se negam os mesmos bens? Todas temos as mesmas dificuldade em acessar os mesmos bens?
E aí, algo mais importante: Se somos nós, feministas, estando interessadas no combate à desigualdade da sociedade, só nos interessa combater a misoginia de algumas mulheres (e daí, quais?) quando pensamos em emancipação das mulheres? Então não nos interessa combater o racismo que as mulheres negras passam, a pobreza que as mulheres sem propriedade passam ou estão sujeitas? Não nos interessa combater a lesbofobia e o fato de que há mulheres que são estupradas e assassinadas pelo simples fato de não se relacionarem sexualmente com homens e se relacionarem sexualmente (de forma pública ou não) com mulheres? Então esse feminismo, que só se interessaria em combater algumas formas de misoginia, ele é um feminismo emancipatório, ou seja, ele quer combater as estruturas que oprimem as mulheres? Ou será que esse feminismo que só se interessaria em combater algumas formas de misoginia, não seria ele, também, uma forma de reforçar a violência contra as demais mulheres, que são baseadas em outras misoginias (misoginia racista, misoginia famélica, misoginia lesbofóbica, por exemplo)? Um feminismo pra ser emancipatório precisa estar atento às deigualdades que marcam a vida de todas as mulheres.

E agora vamos lá. Só as mulheres cis sofrem misoginia? Uma mulher cis, uma mulher trans que transicionou desde criança, uma mulher trans q transicionou já adulta, um homem cis gay, um homem cis hetero que é cabeleireiro ou prefere dançar ballet do que jogar futebol não sofre misoginia? Um cara trans que sempre foi lido como sapatão cis, um cara trans que sempre se interessou por homens, então era lido como mulher cis heterossexual, sofrem e sofreram a vida toda a mesma misoginia? São várias nuances.

A questão, então, não seria que: a misoginia atinge seres corpóreos (vemos e sentimos isso na nossa pele, nos nossos corpos), mas o que ela efetivamente combate é o “feminino” e tudo que se atribui a esse arquétipo? A dominação é masculina – é o masculino que domina o feminino. Tudo que é considerado feminino é ruim, é inferior. Ou todos os exemplos que dei são de pessoas que não passam por situações ruins por causa da misoginia. Não disse que homens cis passam por opressão misógina, por exemplo, mas que a misoginia atua ali. De uma forma se eles forem heterossexuais, de outra se eles forem gays – quando aí, sim, pode e se torna uma opressão, porque homens cis gays são agredidos e assassinados porque se entende que eles não são homens o suficiente. E se a sociedade é binária, não ser homem o suficiente significa o que? Ter alguma parte que é mulher.

A gente precisa trabalhar os efeitos da misoginia, pra pensar quem são os sujeitos do feminismo e daí entender que feminismo não é sobre as mulheres como uma categoria universal etérea, mas sobre o combate á dominação masculina, que é: masculina, cisgenera, heterossexual, proprietária, branca e ocidental.

Uma vez eu falei em sala “o feminismo tem que dar conta de tudo” e muita gente pirou (isso acontece sempre em qualquer espaço que eu fale isso). Eu voltei a falar nisso na aula do dia 11/11. A proposta não é de “tirar” o feminismo das mulheres, mas ampliar os sujeitos dos feminismos e ampliar o que significa lutar pela emancipação das mulheres (ou seja, o que significa a luta feminista) porque não são só as mulheres que são dominadas nessa estrutura – e mesmo as mulheres não somos todas alvo das mesmas opressões estruturais da dominação masculina que, como falei, é branca, cis, heterossexual, ocidental, proprietária.

O transfeminismo não é sobre abolição dos gêneros – quem propõe isso é uma linha do feminismo que se auto-intitula feminismo “radical”. O transfeminismo é sobre a real existência de pessoas que não se conformam com o sexo-gênero que lhes foi assinalado ao nascimento. E essas pessoas também são sujeitos do Feminismo, porque elas também são dominadas e exploradas, também estão sujeitas a serem mortas pelo simples fato de existirem e não se conformarem com a cis-norma. E no capítulo 3 do livro eu falo disso melhor. Tá tudo escrito lá já, inclusive sobre a luta da despatologização das identidades.


Meu feminismo, ninguém mexe”. Temos muitos feminismos e o Feminismo com letra maiúscula e no singular deve ser uma coalizão desses movimentos feministas (com letra minúscula e no plural). Porque se temos alguma coisa que nos une a todas e todos é que existe um ser humano que tem acesso a bens e que explora, domina, manipula e pode até eliminar (e muitas vezes elimina) todas as outras formas de vida. Esse ser humano não é universal, mas é homem, cisgênero, branco, proprietário, ocidental. Veja “O homem dos direitos humanos”, subtítulo do capitulo 2 do meu livro, ali fiz uma boa elaboração sobre isso.

Para uma amostra do livro clique aqui




quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Famílias e multidões LGBT

Eu tenho um sobrinho, por quem (vcs talvez já tenham percebido) eu sou perdidamente apaixonada. E eu não sou a única que é apaixonada pelo Guilherme. Ele é uma unanimidade lá em casa. Minha irmã, a mãe, é perdida de amores, minha mãe e até meu pai, que é durão pra caramba fica todo bobo quando vê o Guilherme. E eu sei que não é toda criança que é amada como ele e querida como ele, sei que muita mulher que pare não quer(ia) ser mãe e isso é uma grande duma bosta.
Mas aí essa semana eu tava conversando com uma conhecida minha sobre pais e mães que abandonam emocional ou materialmente filha e filho por serem LGBT, que é a minha realidade (o abandono emocional pelos pais) e a de muitas pessoas que eu conheci na vida. E pior, de pais que expulsam filhos de casa, dizem que preferiam que estivesse morto do que fosse sapatão, viado ou travesti. E conversando sobre isso falamos sobre como é bizarro que um dia vc possa amar alguém e no outro, por uma questão que nao tem absolutamente nada a ver com vc, com seu corpo, com sua vida, vc não ama mais, vc abandona, vc expulsa, vc rejeita.
Falei com ela que foi isso que fez eu virar acadêmica e ativista. Nunca tive crise de consciência por curtir mulheres, nunca questionei se era isso que eu queria pra minha vida, mesmo tendo vindo de uma religião que dizia que eu ia morrer por causa disso. A minha crise e o que sempre me impulsionou nos caminhos que eu sigo hoje é de entender o que diabos mexe tanto na cabeça de alguém que outra pessoa que não tem nada a ver com ela seja lésbica, viado ou trans. Tipo, o que eu faço com meu corpo, com quem eu transo (ou como disse outra amiga em outro papo - de que forma eu gozo): por que isso incomoda tanto pessoas que não vão transar comigo? Pq isso incomoda tanto todo um conjunto muito grande da sociedade, mas especialmente pq isso incomoda tanto uma mãe e um pai a ponto de eles virarem as costas e rejeitarem uma pessoa a quem um dia elas possivelmente amaram tanto e foram tão apaixonadas como eu sou pelo Guilherme? POR QUE e COMO as pessoas abrem mão tão facilmente e por tão pouca coisa (o que eu faço com meu órgão genital) de alguém que algum dia pode ter significado tanto pra elas?
E aí eu me deparei com a notícia de uma mãe que mandou matar o filho de 16 anos porque ele era viado e ela se incomodava com isso. Ela contratou dois caras pra matarem esse boy e incinerarem aquele corpo, pra apagarem a existência desse boy. Eu não quero e nao vou entrar nas questões de quantos anos essa mãe teve quando o pariu, do abandono material que o Estado, a família dela, a sociedade fez com ela. Essas são questões que têm uma enorme relevância, mas que em nada justificam o assassinato de qualquer pessoa, ainda mais por um motivo tão torpe como o que essa pessoa faz com a própria genitália e com o próprio corpo.
Eu acho que nunca vou encontrar um porquê ou um como, mas o que eu queria é que as pessoas refletissem sobre os discursos delas em relação a quem elas amam. Quando vc abandona seu filho emocionalmente vc o isola de você e o deixa mais vulnerável a violências. E sinceramente quem mais perde é você.
Eu espero mto que todas as pessoas que foram abandonadas emocional ou materialmente, rejeitadas e/ou expulsas de seus lares encontrem famílias na multidão lgbt que nós somos. Pq somos incríveis pra caraca, somos uma enorme multidão e não podemos perder de vista que somos uma grande família e, para muitas pessoas, somos a única família.
Entao eu quero que as famílias das pessoas LGBT se liguem pra não reproduzir essas violências (que podem ser simbólicas, emocionais ou físicas), mas quero ainda mais que as pessoas LGBT se liguem do tanto que a gte é incrível, se aproximem da gte, se afastem de famílias sanguíneas que maltratem vcs sem medo de serem felizes (quem sabe esse afastamento não reaproxima tb? sou sempre a favor de segundas, terceiras chances).
E quem se afasta da gente pelo mero fato de estarmos bancando nossa própria felicidade: quem mais perde são elas e eles.
Somos incríveis e resistimos.
Continuemos a brilhar.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus V

 "A prostituição naturaliza a apropriação da mulher pelo homem, porque ele PAGA pra ter a mulher" (abolicionistas da prostituição)

Vamos falar sobre naturalização da apropriação da mulher pelo homem? O casamento é quase uma escritura de compra e venda, em que a mulher passa da ~propriedade do pai e vira ~propriedade do marido (tanto que até pouquíssimo tempo atrás quando casava obrigatoriamente a mulher tirava nome do pai e botava do marido ou mantinha o do pai, mas incluía o do marido no final).

Dentro do raciocínio de que os contratos que se faz "naturalizam" a apropriação da mulher pelo homem, então se o cara quer reconhecer publicamente a mulher a """adquire"" pelo casamento, se não quer a ""adquire"" pagando por ela, com a prostituição.

Mas não é só nesses dois casos que o homem cis se apropria do corpo da mulher. Se ele não quer ou não pode reconhecer ela publicamente, não quer ou não pode pagar "por" ela, o cara faz o que pra se apropriar do corpo de uma mulher? Estupra ela. A cultura de estupro é justamente a cultura de que os homens são sujeitos e de que as mulheres são objetos à disposição para apropriação masculina.

E o que o casamento, a prostituição e o estupro têm em comum? São homens cis se apropriando de corpos de mulheres para sexo. O problema então seria a heterossexualidade. A heterossexualidade, nesse raciocínio, é que naturaliza a dominação masculina, a apropriação da mulher pelo homem.

As teóricas feministas radicais da década de 80/90 do Canadá (Mackinnon) e dos EUA (Dworkin) falam disso e falam do casamento, não falam só da prostituição e da pornografia, como as brasileiras radfuen leitoras de tumblr. de blogfuen curtem tanto falar. E será pq? Pq tem mtas delas que são bissexuais e heterossexuais e, evidentemente, elas se enxergam tendo agência na relação sexual. Quem não tem agência é sempre a "outra", no caso as coitadas das prostitutas que precisam de salvação. E da-lhe radfuen ao resgate (insira aqui o meme das power ranger rosas)









Daí essas moças da internet dizem que isso é só uma vertente do feminismo radical, o lesbofeminismo separatista (????) e segue a questão: Se é a prostituição que naturaliza a apropriação da mulher pelo homem, o casamento significa o que? E como se insere o estupro nisso tudo? Prostituição é estupro pq consentimento não existe quando é por contrato. Mas o sexo dentro do casamento, o maior contrato de todos, o mais reconhecido na sociedade, que cria mais direitos e deveres - o sexo dentro do casamento é estupro tb?
E volta a questão: se nesse raciocínio a problemática do consentimento na prostituição é que o capitalismo é sobre sobreviver na dominação do capital, pode-se falar em consentimento da mulher no sexo com homem cis, já que o patriarcado é sobre dominação masculina?

Quero deixar marcado: eu sou completamente contra pensar que heterossexualidade é falta de agência, como pensar que prostituição e casamento são falta de agência. Eu tô ligando essas três coisas porque o pensamento radfuen gosta mto de tirar a agência de prostitutas e a possibilidade de consentirem por causa da dominação do capital e são abolicionistas da prostituição porque a prostituição pra elas é ~naturalização da apropriação da mulher pelo homem. Meu ponto é mostrar que esses argumentos e essa linha de raciocínio cabem pra mto mais coisa justamente pra mostrar o perigo nessa assertiva e seus desdobramentos, especialmente porque se fala apenas de uma forma de """apropriação""" e se for pra fazer o debate que seja sem seletividade.


[Publicação original em:  https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10206494567393477&set=a.1406844741663.2056952.1548759955&type=3 ]

Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus IV

 Sobre o debate promovido pela Marcha das Vadias, Turismo Sexual e Olimpíadas: Quebrando Tabus

"O risco na prostituição é gozar"
Indianara falou isso quando dizia o que ela reparou sobre si mesma quando entrou pra prostituição. Ela disse que gostava de transar. E as pessoas transam buscando o que? Prazer. Mas nem sempre quando se transa se goza. E quando ela cobrava pra transar, sendo transar algo que ela gostava de fazer, ela podia não gozar sempre, mas ganhava dinheiro sempre. E se gozasse ela ganhava um adicional ao serviço.
Num momento da fala dela ela retomou isso dizendo que transar por dinheiro não tinha nada de mais, não era aquele absurdo ou monstruosidade que as pessoas tanto falavam pra ela. "O risco que uma prostituta enfrenta é gozar." E IMEDIATAMENTE, ato contínuo, ela voltou e disse "não, claro que há riscos, há muita violência, especialmente da polícia, muitas prostitutas são agredidas, violentadas de toda forma, mas o que eu to dizendo é que sempre vou ganhar dinheiro quando transar e que ainda por cima corro o grande risco de gozar".
Eu não entendo como as pessoas pinçam uma fala, não ouvem a fala até o final e fazem esse tipo de acusação que não faz sentido nenhum. A Indianara é prostituta ativista há mais de 20 anos. Ela é uma referencia não é porque ela é bonita e engraçadinha não. É porque a Indianara sempre lutou por melhores condições de vida e trabalho pra pessoas trans e pra prostitutas (cis e trans). A Indianara é jurada de morte em vários lugares do Rio porque denunciou cafetinas e cafetões que exploravam sexualmente pessoas com cobranças e taxas abusivas. Eu mesma já estive com a Indianara em várias situações em que ela defendia pessoas que se prostituem contra violência, tanto de cliente, quanto de namorado, quanto da polícia. É muito bizarro esse tipo de difamação sobre ela porque é uma mentira absurda, que é fruto de má vontade na escuta ou de transfobia mesmo, se a gente quiser colocar pingos nos is. É uma perseguição virulenta contra uma mulher que, por ser travesti, não ser branca e não ter ensino superior não dialoga da mesma forma que vocês querem que ela dialogue. Não fala a linguagem nos signos que vocês aceitam escutar.
Isso é: transfobia, racismo e preconceito de classe.
Esse tipo de estratégia de pinçar falas assim é exatamente o que fazem políticos como o Bolsobosta, Feliciano e Malafaias.


[Publicação original em:  https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206459539237795 ]

Prostituição e feminismo

Por que toda mulher feminista deve falar da prostituição? Porque a criminalização da prostituição diz respeito à criminalização da livre sexualidade de todas nós. Combater o estigma sobre a prostituição é combater, em última análise, o estigma sobre o livre exercício da sexualidade de toda mulher. Porque as prostitutas são perseguidas pelo Estado (embora a prostituição nunca tenha sido crime no Brasil) para mandar o recado a toda mulher: qualquer uma de vocês que não seja bela, recatada e do lar vai ser perseguida. Por isso precisamos apoiar as prostitutas que combatem o estigma sobre a sexualidade da mulher. Elas são o antagonismo do que a sociedade entende que seja nossa função social. Pra sociedade patriarcal nossa função é de reprodução - nosso sexo é pecaminoso sempre, mas é justificável se formos gerar herdeiros para os homens cis brancos ricos ou gerar mao de obra barata, se formos mulheres pobres, especialmente se forem mulheres negras, como bem apontou Monique Prada, ao dizer que o aborto ainda não foi legalizado no Brasil porque é geração de mão de obra escravizável para as elites (afinal as ricas que querem abortar o fazem em segurança, as pobres morrem e ser pobre no Brasil é também uma questão de raça!)

O combate ao estigma sobre a prostituição é, em última análise, o combate à repressão/opressao sexual da qual todas as mulheres (cis ou trans) somos alvo por e quando ousamos transar sem querer reproduzir.
Falar sobre a prostituição sim. SEMPRE apoiando as prostitutas ativistas! Somos aliadas, mas são elas o front dessa batalha.

Por uma putarevolução: mais orgasmos por favor.
‪#‎MenosAmorMaisOrgasmo‬

Feminismo Radical 101 críticas II

Sobre a palestra de feministas radicais na FND em 15/06 sobre "Cultura de estupro e prostituição"


Anotem aí:
Prostituição é cultura de estupro
BDSM é cultura de estupro
Relacionamento aberto é cultura de estupro
"Ela faz um contrato com ele pra se relacionar com ele. Isso é o relacionamento mais abusivo possível" - amiga, tá falando de casamento?!
- mulher que fala em meu corpo minhas regras não pensa no que é ser tratada como objeto todo dia
- liberdade sexual é fazer orgia (ja dizia sara winter bolsominion que as feministas só querem saber de orgias, não é mesmo?!)
Feministas radicais na roda de conversa "Prostituição e cultura de estupro" na FND (a FND tem potencial pra mta coisa boa, viva as professoras feministas da casa, mas ai, que vergonha!) falas de xará e de Bubbles
-- só pra pontuar que:
* no BDSM as mulheres também são dominadoras
* amor livre e relações abertas não são só entre homens hetero e mulheres hetero e as mulheres, mesmo as cis hetero também têm agência nisso. Nenhum relacionamento é igual ao outro.
* a gente é burra aqui, a gente não fala de hipersexualização e a gente não sabe o que é ser tratada como objeto sexual no dia a dia. Inclusive quem rebola até o chão não faz ideia que o rebolado é sexualização
A gente tem, sim, que problematizar o machismo em tudo. Mas dizer taxativamente que tudo é cultura de estupro, compas vcs tão muito, muito equivocadas.
E: entre mulheres também tem relacionamento abusivo. Inclusive, né?! rs deixa quieto.
Edição: soube agora que Bubbles usou o roteiro de um filme fictício de terror pra exemplificar como roteiro de pornografia é bizarro. Tudo pode ser bizarro, mas ficção terror é uma coisa, pornografia é ôtra coisa.

[Publicação original em:   https://www.facebook.com/heloisamelino/posts/10206432548643047 ]