quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Carnavalismo

A atriz Vera Holtz, publicou nesse carnaval (2016) uma série de fotos que me fizeram muito pensar sobre o que é essa festa, o que ela significa. Pra quem é carioca ou mora no Rio de Janeiro – e provavelmente em outras cidades onde o carnaval de rua seja tão forte quanto aqui – a data mais esperada não é o natal ou o réveillon. O que marca nosso começo do ano não é o dia 1º de janeiro, mas a segunda-feira da semana seguinte à do carnaval. O empresariado e as pessoas mais conservadoras reclamam, as mais festivas brincam: no Rio de Janeiro as coisas só funcionam depois do carnaval. É a mais pura verdade.

Associado a isso me fizeram pensar também três outros posts de facebook. O primeiro que eu li foi compartilhado no mural de uma grande amiga, era o texto de um cara que eu não sei quem é, o Cezar Migliorin, que falava sobre a ocupação do espaço público. “O carnaval no Rio de Janeiro me dá uma certeza: qualquer melhora do espaço urbano passa por uma intensa carnavalização.”, começa. Ele fala das longas caminhadas, do uso extensivo do espaço público por pessoas que não costumam fazer isso, da convivência entre pessoas de diferentes sexualidades, das longas caminhadas. E arremata “Não, não se trata de um carnaval eterno, mas da evidência de que muitos dos problemas das cidades - segurança, preconceitos, circulação – são resolvidos quando as ruas são ocupadas, quando se tem tempo e festa.”

A gente só caminha na cidade o mínimo possível pra chegar a um transporte público (geralmente ruim) ou particular que nos deixe novamente no ponto mais perto de casa, colégio, universidade, local de trabalho. Até se matricular numa academia de ginástica que seja longe de casa é furada, porque a gente não gosta de caminhar a não ser que seja uma obrigação e, à exceção das pessoas que trabalham com seus corpos, a academia de ginástica não é algo totalmente indispensável pra ninguém. Mas no carnaval, não. A gente pega um metrô (ou trem) até a estação mais perto possível de um bloco, mas que também pode ser longe. E a gente anda até o bloco, anda no bloco e anda pra ir de um bloco pro outro. Ônibus quase não passa no centro da cidade e na Lapa, quando passa pega trânsito ou vem cheio de mais, sem contar a tarifa altíssima que não dá pra gente ficar pagando toda hora. E né? A gente tá bebendo mesmo, vamos caminhar que a gte nem sente direito, vai que aparece outro bloco maneiro no caminho. Então a gente caminha muito, a gente conhece novas ruas, a gente não vê o comércio habitual aberto, a caminhada é em meio a outras pessoas foliãs e a pessoas vendedoras de cerveja (obrigada por vcs existirem, o caminho fica mais curto a cada isopor).
Ruas ocupadas, festas grátis e tempo livre – tudo que o capitalismo odeia. Pra piorar, a gente faz isso fortalecendo laços de amizade com quem anda junto e interage de forma brincalhona e gentil até com quem a gente não conhece, afinal tem uma galera com umas fantasias muito massas que não dá pra não fazer pelo menos um comentário.

Aí acordei hoje e vi as fotos da Vera Holtz. A primeira que vi foi essa aqui, num grupo de pessoas conhecidas que foi criado só pro carnaval.


Curiosa, abri. O primeiro comentário era de uma moça, que dizia ”Na última foto vai aparecer só a mesa”



Mais curiosa fui ver as demais fotos. A primeira, publicada no primeiro dia de carnaval (05/02/2016) era da Vera com maquiagem borrada, cabelo bagunçado, nitidamente destruída de uma bela farra, um copo enorme na frente onde lia-se “BOLDO”. Chá de boldo é bom pra curar excessos, tanto de bebida quanto de comida. A foto era de uma pessoa com uma baita ressaca, coisa de carnaval (mas logo no primeiro dia dele).

Vi a sequencia das fotos. Ela, destruída, se aproximava e bebia o copo. Depois ele estava jogado na mesa, ela caída ao lado e  parava na 09, onde só se vê o copo vazio e a mão dela. Curti a página, porque queria ver aonde ia dar. Continuei bisbilhotando a internet.

Daí vi um post compartilhado na página de uma conhecida, uma mina preta sapatão lá da UFRJ, da graduação. Eu sempre curto os roles que ela publica, ela é poeta e eu sou fã do que ela escreve, então ela tá sempre na minha timeline, o facebook é seletivo, né? Quanto mais você curte ou comenta algo de uma página ou perfil, mais aparece na sua timeline . O post compartilhado era o post da Renata Corrêa, que eu não faço ideia de quem seja (amo esse rolê do facebook da multitude de fontes disponíveis a um clique). Aqui a Renata fala de um outro post de uma pessoa que eu tb não sei quem é, mas que imagino seja alguma “personalidade conhecida” do Rio de Janeiro. A pessoa em questão reclama das “cenas de Carnaval de jovens bebados, vomitando e xingando alto em Ipanema”. E a autora fala que dificilmente vê isso acontecer no seu carnaval, porque passa o carnaval sempre pelos blocos do centro da cidade, onde se concentra, em maioria, a galera que vai pro carnaval porque curte carnaval e não a galera que gosta do carnaval porque é só “um show gratuito qualquer”, então as pessoas querem saber de ficar bêbadas, fazer pegação e zoar. Ela continua falando de como é o carnaval pra quem gosta e entra no clima da festa pela festa:
O Carnaval é resistência, é ocupar o espaço público. Nos últimos dois dias vi frequentadores dos blocos onde eu estava se impressionarem com a existência do morro da conceição, dos bairros dentro da zona portuária, entrarem pela primeira vez no buraco do lume, observarem a cidade de uma outra maneira, se tirando da zona de conforto e entrando em contato com essa entidade mística, o outro.
E a cada ano que passa estamos mais politizados - e existe política nas meninas que saíram de topless ou de maiô sem medo de assédio e existe política na marchinha improvisada contra o Pedro Paulo, existe política quando um grupo de amigos canta "deixa o cabelo dele" e é acompanhado pela galera, existe política quando o bloco para para gritar uma palavra de ordem pelo fim da polícia militar, existe política na menina negra vestida de índia protestando contra a PEC da remarcação, existe política no bando de foliões vestidos de paredão "machistas não passarão", fora as pequenas gentilezas que acontecem dentro dos blocos, muitas vezes entre desconhecidos, que diferenciam substancialmente esse carnaval de gente rolando no vômito do carnaval que eu conheço.

Eu sempre brinco com meus amigos que não ligo pra fazer pegação no carnaval, porque isso eu faço o ano inteiro, que quem olha pro carnaval e termina namoro só por isso ou dá perdido na namorada – hábitos corriqueiros de homens cis heterossexuais – é porque tá precisando ser menos conservador no dia a dia e fazer pegação também o ano inteiro. Mas não é só homem cis hetero que faz isso, óbvio. Tem gente que não tá “autorizado” a fazer pegação o ano inteiro porque a sociedade reprime, violenta e mata. A Rua Farme de Amoedo, em Ipanema, um dos points gays mais conhecidos da cidade, fica um fervo só. Impossível de caminhar. Pra ir da Visconde de Pirajá pra Prudente de Moraes não adianta tentar passar na Farme, tem que ir pela Vinícius ou pela Teixeira de Melo. A rua vira um corredor de pegação, em que você vai passando e beijando (no mínimo) um monte de mulher, se você for mulher, um monte de homem se você for homem e todo mundo se você for bi ou estiver a fim disso. Rola boquete, rola punheta, rola siririca, rola tudo na Farme. E muito furto também. E muita gente vomitando e passando mal também. Eu já fui frequentadora de Farme – primeiro porque eu queria fazer pegação e eu também não era autorizada a isso e/ou não conhecia gente pra fazer isso em outras épocas do ano. Depois porque meus amigos sentiam vontade de ir e eu acompanhava. Mas desde o ano passado (2015) eu decidi que eu não ia mais. E esse ano eu não pisei na Farme. Esse ano eu resolvi fazer “carnaval de hetero”.

Eu sempre xinguei os conservadores, mas também sempre falei bem do “carnaval de hetero” – os blocos. O único bloco de sapatão mesmo sempre foi o Toco-Xona, depois surgiram outros, de uns dois anos pra cá, talvez? Pelo menos foi quando eu conheci o Bloquete, o Viemos do Egyto, o Agytoê e o Bunytos de Corpo. Que são blocos de zuera, de carnaval mesmo e não de carão. Na Farme nunca deu certo ir fantasiada e ficar brincando com as pessoas, as pessoas não brincam com desconhecidos na Farme, elas querem fazer pegação. Se você é mulher e passa uma mulher com uma fantasia massa, se vc brincar com ela ou ela tenta te pegar ou ela te olha feio porque não quer te pegar. Pelo menos pra mim foram raras as vezes que consegui zoar com pessoas desconhecidas do mesmo sexo-gênero que eu na Farme. Nos blocos você brinca com homem, com mulher, seja cis ou trans, viado, sapatao, bi, hetero, o que for. Faz guerra de pistola de água, pede pra tirar foto por causa da fantasia, canta as músicas ou grita as falas emblemáticas dos personagens que as pessoas tao representando em fantasia, enfim, zoera generalizada e de boas.  E pra mim isso é a parte boa do carnaval. Fazer pegação é bom (maravilhoso), mas isso eu consigo fazer o ano todo, se eu quiser. Essa zoera na rua com gente que você nunca viu nem nunca mais vai ver, só no carnaval. E 24 horas por dia ou o quanto seu corpo aguentar.

E esse ano eu só quis fazer isso. Colei com as amigas heteros do IPPUR, com a Amanda (cota hetero smp), com a Ingrid e com o Bassi, os migos que curtem MESMO carnaval. Que também fazem a pegação que quiserem (se quiserem) durante o ano e no carnaval querem purpurina, glitter, fantasia e zueira. O único dia ruim de carnaval foi sábado, o dia do Toco-Xona, porque ficou absolutamente cheio do que a gente chama de “viado da farme”, as bichas heteronormativas que são “masculino e discreto, fora do meio”. Eles encheram o bloco e ficaram lá de corpos semi-nus e fazendo carão. Não deu pra andar na praça, não deu pra achar as pessoas amigas, não deu pra passear em busca de fantasias engraçadas. Só dava pra ficar parado num lugar e conversar com quem foi junto. A gente se diverte junto sempre, então foi um “dia de carnaval” que só não foi horrível porque a gente se ama.
Dia seguinte, domingo, eu primeiro encontrei o Thi em bloco de rua, que começou na Tiradentes e foi até o MAM e de lá eu colei com as meninas do IPPUR e fomos pra Gamboa. Fiz trajetos como esses que a Renata Corrêa fala na publicação. Eu nunca tinha ido no Morro da Conceição e achei lindo – to ansiosa pra levar alguém legal lá num dia por romance. Depois a gente ia pegar um taxi pra casa, mas a Ana falou que ia a pé pro metrô “porque ontem eu fiquei mais de uma hora esperando e mesmo assim não passou”. Daí fomos eu, Flavia, Luiza, Laerte e a Elza a pé da Gamboa até os arcos da Lapa. Fomos conversando, passando por um monte de lugar que a gente não costuma andar, rindo, zoando, tirando foto, fazendo xixi na rua (legalizando a bundinha) e contando história. Foi uma hora e quinze de caminhada. Depois eu e Luiza fomos pra Nuvem, na Rua Morais e Vale, que no ano passado foi um reduto de pessoas LGBT que não suportam mais a Farme. E tava a mesma boa onda, pessoas brincando, rindo, interagindo de forma amigável (e pegatícia) com desconhecidos e muita gente conhecida passando e chegando.

Segunda e terça foi a mesma coisa: fantasias, blocos e longas caminhadas até o corpo não aguentar mais. Vi algumas poucas pessoas bêbadas passando mal, só vi vômito no busão saindo do Leblon pra Copacabana (devia ser dos foliões da cerveja quente e zika) e tive interações incríveis. Hoje é quarta de cinzas, daqui a pouco vou pra um bloco em Santa Teresa, mas se não tiver energia também tá de boas, porque meu carnaval foi cheio e divertido.

Daí depois de ver essa publicação e pensar isso tudo, vi a publicação de um cara conhecido. Ele reclamava também do carnaval, do lixo, do assédio dos playboys e da falta de respeito com os garis. Terminava falando “carnaval é a grande lacuna no processo civilizatório.” Eu só comentei que existiam vários carnavais e copiei o link da Renata, mas fiquei pensando, juntando a publicação da Renata com a do Cezar (sobre a utilização do espaço público, sobre as festas grátis e o tempo livre, sobre a convivência de pessoas diferentes em uma maior harmonia que no resto do ano) e pensei: QUE BOM que o carnaval existe como lacuna do processo civilizatório, porque a civilização ocidental e o capitalismo querem o oposto do que a gente quer no carnaval. Querem nos padronizar, querem nos sufocar, querem roubar nosso tempo livre e qualquer possibilidade de harmonia entre pessoas diferentes – porque quanto mais harmônico na diferença os grupos são, mais empatia entre as pessoas e mais se fortalecem as causas individuais que são coletivas; a possibilidade do combate a opressões precisa da empatia.

Foi aí que vi a última foto do ensaio da Vera Holtz: era ela limpa, cabelo arrumado, de óculos escuros segurando um ramo verde de boldo. Um comentário dela logo abaixo: “estou bem”. 


Nada de terminar o ensaio só com a mesa, como pensou a moça que fez o comentário na foto 9/11, o que seria uma total destruição. Hoje, no último dia de carnaval, o ensaio termina com um renascimento, uma revitalização. 

Será que o carnaval é o momento mais esperado pelas pessoas que moram no Rio porque é ele que faz com que a gente consiga suportar as pesadas correntes da vida, que em muito são parte do processo civilizatório (neo)colonizador capitalista? Acho que sim. E também acho que funciona isso em termos pessoais.

Eu tô sempre estressada nos carnavais, sempre me sinto em momentos de transição. Não foram poucas as vezes que eu fiquei triste nesses cinco dias, devo ter chorado todos ou quase todos os dias, mas ao mesmo tempo eu saía, me distraía, tinha trocas leves e trocas intensas com as pessoas com quem eu saí. Eu todo dia ri muito mais que chorei, eu todo dia brinquei muito mais do que fiquei mal. Eu todo dia me diverti muito mais do que me deprimi. Eu sinto uma energia de renovação que me traz a vontade de continuar. E 2015 foi um ano difícil, muito difícil pra mim, quem me conhece sabe. 

Parafraseando o post do Cezar, qualquer melhora passa por uma intensa carnavalização.
Feliz 2016!

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