Com frequência me deparo com questionamentos que, diretamente ou não, têm essa pergunta por detrás "Quem é o sujeito do Feminismo?" Essa questão surgiu diversas vezes no curso do qual fui uma das construtoras e professoras,
Diálogos feministas e práticas profissionais no Direito e na Psicologia, tanto em sala de aula, quanto nas avaliações escritas, que são parte do requerimento para o certificado.
Mas eu vejo demais essa discussão rolando pelas redes, inclusive sobre o que significa um "feminismo interseccional" e o que pretendem os transfeminismos e ainda não tinha escrito em nenhuma rede social sobre isso. Como escrevi pra devolutiva de uma avaliação, resolvi compartilhar e espero poder ajudar quem também encontra questionamentos semelhantes por aí.
No texto fiz referência ao meu livro
Potência das ruas - Direito, linguagem e emancipação: processos de luta e o potencial transformador dos movimentos sociais, que foi texto-base para o debate sobre Direito e Feminismo no curso, onde além de abordar o papel que o Direito pode ter (e como) na luta por direitos, trago alguns históricos do movimento social pela despatologização das transidentidades no mundo e pela regulamentação da prostituição no Brasil, do transfeminismo e do putafeminismo.
Uma amostra do livro pode ser encontrada aqui:
amostra Potência das Ruas
Quem é o sujeito do Feminismo?
A
interseccionalidade é uma perspectiva sobre o feminismo e não uma categoria de
feminismo em si. O transfeminismo é um movimento teórico, político e social, vamos conversar um
pouquinho sobre cada coisa.
A
grande questão aqui é “Quem é o sujeito do Feminismo?”, uma questão que vem
sendo feita há décadas por várias teóricas e ativistas. E que pode também
incluir outra pergunta: O que significa ser mulher. Lembras do texto “E eu nãosou uma mulher?” que é a transcrição de uma intervenção política da Sojourner
Truth? Ela não rstava fazendo uma crítica ao feminismo, esse movimento e essa
teoria sequer existiam com esse nome quando
ela falou aquilo. Por que eu sublinhei?
Por que uma prática não existe só a partir do momento que ela é nomeada: assim
como uma mulher se reconhece feminista, porque vê que já tinha práticas
feministas, mesmo que o nome feminismo tenha surgido muito recentemente, a
gente pode falar que essa prática já existe há mto tempo.
E
vamos lá: A Truth falava naquele momento pós-abolição da escravidão, porque
havia um discurso de que as mulheres não eram iguais aos homens por ser mais
fracas, mais vulneráveis, comerem menos, trabalharem menos. E ela fala que come
tanto ou mais, que trabalha muito e sempre trabalhou, que nunca precisou de
ajuda pra passar por uma poça de lama – e ela não era uma mulher? Ela tava
dizendo que aqueles argumentos daqueles homens eram inválidos. Mas a gente pode
trazer essa mesma linha de raciocínio pra dentro dos feminismos, somando às
críticas que teóricas feministas fazem quando falam que o movimento teórico que
estava sendo chamado de feminismo estava
falando só sobre as necessidades de algumas mulheres quando falava, por
exemplo, que as mulheres estavam lutando pelo acesso ao mercado de trabalho,
mas havia mulheres que sempre trabalharam. Então aquele feminismo que só lutava
por isso, estava falando de quais mulheres? As que já trabalhavam não eram mulheres
ou o feminismo não era pra elas?
A
perspectiva interseccional do feminismo justamente demonstra que as
mulheres não passamos pelas mesmas opressões sempre, talvez nunca. Uma mulher
cis e branca como eu e você tem acesso a bens que mulheres cis e negras podem
não ter, que mulheres trans e brancas podem não ter. Uma mulher cis branca que
seja heterossexual e tenha um marido tem ainda mais acesso a bens que uma
mulher cis branca que seja heterossexual, mas seja solteira ou que uma mulher
cis branca que seja lésbica – porque a sociedade reconhece naquele homem um
provedor, então ele tende a ter salários maiores. E também porque os homens
ocupam os espaços de poder na sociedade, o marido vai ter acesso a melhores
empregos e se for do interesse dele
ele vai pedir a algum outro amigo ajudar dando um emprego pra esposa dele. E
por que eu coloquei esse negrito aqui? Pra gente não perder de vista que quem
continua mandando nessa possibilidade é o marido, o interesse dele, então mesmo
aquela mulher cis branca hetero casada tendo mais acesso a bens (o que a gente
chama de privilégios sociais), ela também está submetida a um homem e isso
também é razão de dificuldade de acesso, porque se ele não se interessar ele
não só não ajuda, como também pode atrapalhar, por exemplo, pedindo pro tal
amigo despedir a esposa quando quiser. E isso vai gerar várias outras
violências.
Então apesar de acessar privilégios, essa mulher não sai da
condição de estar sendo dominada por um homem cis, branco, heterossexual,
marido e com mais poder econômico e social do que ela. E o feminismo
interseccional vai estar atento a isso, vai fazer o debate de privilégios como
acessos a bens, que podem ser estruturais ou relacionais. Vão ser estruturais
quando for considerado que uma mulher branca
acessa o mercado de trabalho com mais facilidade que uma mulher negra;
ou que uma mulher cis do que uma mulher trans; que uma mulher hetero do que uma
mulher que seja declaradamente lésbica. Vão ser situacionais ou relacionais
quando eles forem relativos, quando eu considerar que uma mulher cis branca que
ande sozinha na rua a noite vai estar em posição de vulnerabilidade por medo de
estupro em relação a qualquer homem, inclusive a um homem branco ou negro. Mas
se essa mesma mulher cis branca estiver na praia de Copacabana e gritar
“Ladrão” pra um homem cis negro que esteja correndo sem camisa, esse cara pode
ser espancado até a morte por uma turba violenta. Então ela na situação 1 tá em
subalternidade, porque aqui o o dispositivo do sexo-gênero atua com mais força
do que o da raça e da classe; na 2 ela subordina, porque o dispositivo da raça
e da classe atuam ali com mais força do que o dispositivo do sexo-gênero. Esse
é um exemplo fácil, mas há exemplos difíceis. E a perspectiva interseccional
propõe que estejamos sempre atentas aos dispositivos, aos privilégios e que
saibamos dialogar a partir disso. Sem uma perspectiva interseccional eu criaria
uma essencialização de sujeitos, de
opressões e de posições sociais. Essencialização estática, que não muda nunca.
Seria equivalente a dizer que na situação 2 a mulher continua em
subalternidade, mas se quem pode perder a vida é o homem, pelo mero fato de ela
gritar que foi roubada (independente de ter sido ou não), então é fato que ela
na situação 2 não está em subalternidade, que o sexo-gênero, embora seja uma
condição que a torna hierarquicamente inferior em algumas situações, não vai
atuar sempre e a todo momento, vai ter momento que não interessa se ela é
mulher (podia ser um homem branco gritando, por ex, o resultado ia ser o
mesmo), mas interessa que ela é branca – porque a gente vive numa sociedade
que, além de misógina é racista.
O
patriarcalismo – em vez de o patriarcado – e a perspectiva interseccional, em
vez da perspectiva da essencialização dos sujeitos, nos permite ter uma visão
mais realista e mais objetiva da vida. Porque seria mentira
eu dizer que na situação 2 a mulher ainda tá subordinada a qualquer homem, ela
não tá. É mais realista eu falar que naquela situação a raça negra ficou
subordinada em relação a raça branca. E o feminismo, quando se propõe a ser um
movimento de emancipação de todas
as mulheres não pode desconsiderar a raça e a classe social, porque não existem
só mulheres brancas e com grana no mundo. Ou será que as mulheres que não têm grana
e não são brancas não são mulheres? Entende o que quero dizer? O mesmo vai
valer para as mulheres trans.
Eu
entendo o “receio” de "perder" um movimento, mas quando a gente fala em ampliar o sujeito dos feminismos
a gente tá aumentando as pessoas que vão estar nessa luta com a gente. E isso
potencializa o movimento.
Eu
falei sobre isso na última aula, elaboro isso no livro. Vide cap 1, p 59 e cap
3, em especial a sessão sobre
transfeminisnos, p. 110 em diante.
A questão
“Quem são os sujeitos dos feminismos” é: feminismo é sobre mulheres ou sobre
enfrentamento às estruturas de dominação da sociedade?
Se é sobre mulheres, quais mulheres?
São só
mulheres que sofrem misoginia?
Todas
as mulheres sofrem com misoginia da mesma forma? Estamos todas expostas às
mesmas violências, todas temos acesso aos mesmos bens? A todas se negam os
mesmos bens? Todas temos as mesmas dificuldade em acessar os mesmos bens?
E aí,
algo mais importante: Se somos nós, feministas, estando interessadas no combate
à desigualdade da sociedade, só nos interessa combater a misoginia de algumas
mulheres (e daí, quais?) quando pensamos em emancipação das mulheres? Então não
nos interessa combater o racismo que as mulheres negras passam, a pobreza que
as mulheres sem propriedade passam ou estão sujeitas? Não nos interessa
combater a lesbofobia e o fato de que há mulheres que são estupradas e
assassinadas pelo simples fato de não se relacionarem sexualmente com homens e se
relacionarem sexualmente (de forma pública ou não) com mulheres? Então esse
feminismo, que só se interessaria em combater algumas formas de misoginia, ele
é um feminismo emancipatório, ou seja, ele quer combater as estruturas que
oprimem as mulheres? Ou será que esse feminismo que só se interessaria em
combater algumas formas de misoginia, não seria ele, também, uma forma de
reforçar a violência contra as demais mulheres, que são baseadas em outras
misoginias (misoginia racista, misoginia famélica, misoginia lesbofóbica, por
exemplo)? Um feminismo pra ser emancipatório precisa estar atento às
deigualdades que marcam a vida de todas
as mulheres.
E
agora vamos lá. Só as mulheres cis sofrem misoginia? Uma mulher cis, uma mulher
trans que transicionou desde criança, uma mulher trans q transicionou já
adulta, um homem cis gay, um homem cis hetero que é cabeleireiro ou prefere
dançar ballet do que jogar futebol não sofre misoginia? Um cara trans que
sempre foi lido como sapatão cis, um cara trans que sempre se interessou por
homens, então era lido como mulher cis heterossexual, sofrem e sofreram a vida
toda a mesma misoginia? São várias nuances.
A
questão, então, não seria que: a misoginia atinge seres corpóreos (vemos e
sentimos isso na nossa pele, nos nossos corpos), mas o que ela efetivamente combate
é o “feminino” e tudo que se atribui a esse arquétipo? A dominação é masculina
– é o masculino que domina o feminino. Tudo que é considerado feminino é ruim,
é inferior. Ou todos os exemplos que dei são de pessoas que não passam por
situações ruins por causa da misoginia. Não disse que homens cis passam por
opressão misógina, por exemplo, mas que a misoginia atua ali. De uma forma se
eles forem heterossexuais, de outra se eles forem gays – quando aí, sim, pode e
se torna uma opressão, porque homens cis gays são agredidos e assassinados
porque se entende que eles não são homens o suficiente. E se a sociedade é
binária, não ser homem o suficiente significa o que? Ter alguma parte que é
mulher.
A
gente precisa trabalhar os efeitos da misoginia, pra pensar quem são os
sujeitos do feminismo e daí entender que feminismo não é sobre as mulheres como
uma categoria universal etérea, mas sobre o combate á dominação masculina, que
é: masculina, cisgenera, heterossexual, proprietária, branca e ocidental.
Uma
vez eu falei em sala “o feminismo tem que dar conta de tudo” e muita gente
pirou (isso acontece sempre em qualquer espaço que eu fale isso). Eu voltei a
falar nisso na aula do dia 11/11. A proposta não é de “tirar” o feminismo das
mulheres, mas ampliar os sujeitos dos feminismos e ampliar o que significa
lutar pela emancipação das mulheres (ou seja, o que significa a luta feminista)
porque não são só as mulheres que são dominadas nessa estrutura – e mesmo as
mulheres não somos todas alvo das mesmas opressões estruturais da dominação masculina
que, como falei, é branca, cis, heterossexual, ocidental, proprietária.
O
transfeminismo não é sobre abolição dos gêneros – quem propõe isso é uma linha
do feminismo que se auto-intitula feminismo “radical”. O transfeminismo é sobre
a real existência de pessoas que não se conformam com o sexo-gênero que lhes
foi assinalado ao nascimento. E essas pessoas também são sujeitos do Feminismo,
porque elas também são dominadas e exploradas, também estão sujeitas a serem
mortas pelo simples fato de existirem e não se conformarem com a cis-norma.
E no capítulo 3 do livro eu falo disso melhor. Tá tudo escrito lá já, inclusive
sobre a luta da despatologização das identidades.
“Meu
feminismo, ninguém mexe”. Temos muitos feminismos e o Feminismo com letra
maiúscula e no singular deve ser uma coalizão desses movimentos feministas (com
letra minúscula e no plural). Porque se temos alguma coisa que nos une a todas
e todos é que existe um ser humano que tem acesso a bens e que explora, domina,
manipula e pode até eliminar (e muitas vezes elimina) todas as outras formas de vida. Esse ser humano
não é universal, mas é homem, cisgênero, branco, proprietário, ocidental. Veja
“O homem dos direitos humanos”, subtítulo do capitulo 2 do meu livro, ali fiz
uma boa elaboração sobre isso.